O fenômeno da desistência do crime: a predisposição ao comportamento criminoso
Por Carlo Velho Masi
Autocontrole, propensão criminal e criminalidade são termos diferentes usados para descrever um conceito similar, que é uma predisposição interna ao comportamento antissocial ou criminoso. Os vários componentes deste pensamento são referidos como predisposições cognitivas e podem contribuir para as investigações do processo ofensivo.
Por muitas décadas, os criminólogos asseveraram a importância dos laços sociais na explicação do comportamento ofensivo. Todavia, muitas mudanças ocorreram nas estruturas sociais e nos valores sociais em geral, o que fez com que os laços sociais tomassem novas formas na sociedade atual. A medição de laços sociais deve sofrer alguns ajustes às mudanças nos valores da sociedade contemporânea.
Estudos do passado descobriram, por exemplo, que o casamento tinha um maior efeito inibidor do crime em comparação com a mera coabitação com um parceiro. Hoje, porém, a coabitação (união estável) tornou-se muito mais frequente e os indivíduos tendem a casar muito mais tarde. O mesmo ocorre para filhos fora do casamento. O competitivo mercado de trabalho faz com que as pessoas estudem mais e começam a trabalhar mais tarde. Logo, alguns laços sociais antigamente medidos na adolescência tardia e no início da idade adulta, como o grau de comprometimento com o trabalho e a fidelidade ao empregador, já não são mais tão relevantes. Indivíduos que perseguem um grau superior de educação podem ter empregos temporários ou somente de meio turno e o grau de ligação com estes trabalhos é questionável. A ambição acadêmica ou profissional pode ser uma medida mais precisa do nível de comprometimento ao emprego.
Utilizando amostras contemporâneas pode ser necessário adaptar as medidas de laços sociais às mudanças nas normas sociais e nos valores; do contrário, pode ocorrer uma interpretação equivocada do papel dos laços sociais no processo de desistência.
Nos últimos anos, evidências empíricas nas pesquisas sobre carreiras criminosas sugeriram a existência de distintos tipos de delinquentes. Os estudos da desistência mostram, de outro lado, que dificilmente um agressor pode ser rotulado dentro de uma determinada categoria. Esses grupos não capturam plenamente os padrões e a complexidade da delinquência ao longo de toda vida. Novas pesquisas passaram a questionar fortemente a validade de uma tipologia de delinquentes e outras formas de classificação. Certo é que a pesquisa empírica ainda está por estabelecer as causas que acionam e sustentam o processo de desistência de acordo com diferentes indivíduos e até que ponto desistentes verdadeiramente se distinguem de persistentes e não-ofensores.
As pesquisas conduzidas até o momento também não conseguiram explicar o papel das oportunidades criminais e dos fatores situacionais no processo de desistência. Em geral, os estudos demonstram que medidas de autocontrole e controle social tem uma limitada capacidade explicativa na previsão do comportamento criminal. Um indivíduo que é fortemente motivado a perpetrar crimes vai investir esforços em descobrir oportunidades de cometer crimes; outro que não exibe uma forte motivação para engajar-se no crime provavelmente não irá buscar essas oportunidades, mesmo que disponíveis. Futuros estudos devem investigar as interações entre predisposições cognitivas e oportunidades criminais, isto é, como diferentes pessoas reagem a diferentes tentações.
Ainda permanecem incertas as variáveis que levam ao processo de desistência. Os processos de desistência do crime poderiam ter algumas similaridades com outros comportamentos humanos problemáticos, como o consumo de drogas. Não é possível determinar se os achados relacionados à previsão de desistência podem ser generalizados para todas as sociedades, pois as pesquisas criminológicas existentes se baseiam em amostras de países ocidentais desenvolvidos e industrializados.
O que de mais concreto se tem é que as pesquisas qualitativas até agora realizadas demonstram a importância da reintegração do delinquente, especialmente porque aqueles que não querem reincidir geralmente demonstram que recebem pouco ou nenhum apoio para se reintegrarem socialmente após deixar a prisão. Normalmente, ao invés de receberem estímulos para fazer a transição da prisão para o convívio social essas pessoas costumam continuar como alvos da polícia, não raro sendo acusadas de novos crimes que não praticaram, além de sofrerem enormes dificuldades em relação à emprego, acomodação, relacionamentos estáveis, uso de entorpecentes, etc. Isso prejudica sobremaneira os esforços de desistência.
Tais conclusões evidenciam a necessidade de investir mais esforços na reintegração do delinquente e prover os indivíduos com ferramentas que os permitam manter os esforços desistentes e resistir às tentações de engajamento no comportamento criminal. A desistência é um processo contínuo, que não ocorre repentinamente. A reabilitação visa a melhorar as habilidades cognitivas, especialmente em situações sociais desafiadoras, e a reabilitação permite sustentar esses esforços quando eles são testados. Assim, a desistência tende a ser maximizada quando os esforços de intervenção integram a as dimensões de reabilitação e reintegração.
Ao que se percebe, ainda que as pesquisas acerca da desistência tenham tido grande desenvolvimento ao longo dos últimos anos, diversas questões permanecem inexploradas. Considerando as diferentes metodologias que podem ser utilizadas na análise da desistência do crime, não é surpresa que os pesquisadores não cheguem a um consenso sobre sua definição, suas causas e sobre os meios de atingi-la. Consequentemente, há necessidade de aumentar a comunicação entre os estudiosos, de modo a estabelecer algumas generalizações na pesquisa sobre a desistência.
Resenha do artigo “Desistance from Crime: Theoretical, Empirical, Methodological, and Policy Considerations” (Journal of Contemporary Criminal Justice, Sage, v. 23, n. 1, p. 5-27, fev. 2007), de autoria de Lila Kazemian, Phd em Criminologia pela Universidade de Cambridge/GBR e Professora do Departamento de Sociologia da John Jay College of Criminal Justice (Nova Iorque/EU). Disponível aqui.