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O fenômeno da desistência do crime: o início e o fim da carreira criminosa

Por Carlo Velho Masi

Nos últimos anos, houve um substancial aumento da literatura acadêmica concernente ao tema da desistência do crime. No entanto, o conhecimento acerca dos processos de desistência remanesce em grande parte limitado. Ainda muito pouco se sabe acerca das reais causas que levam à desistência.

O propósito do artigo é identificar as principais limitações da literatura a respeito do tema e expor alguns pontos teóricos, empíricos, metodológicos e políticos relativos à sua análise.

A associação entre idade e crime é um dos fatos mais aceitos pela Criminologia. Normalmente, os níveis de criminalidade atingem o seu auge na adolescência tardia e no início da fase adulta e depois tendem a decair. Pouco se discute, porém, acerca das causas deste declínio. O estudo da desistência do crime pode colaborar para este entendimento.

Muitos autores afirmam que as variáveis que explicam o início da criminalidade são similares àquelas que explicam a sua desistência, outros sustentam que são distintas, o que culminaria com uma redefinição dos princípios básicos da teoria geral do crime. De um ponto de vista político, a compreensão das teorias da desistência do crime permitiria a obtenção de valiosas informações para esforços de intervenção. Se as razões que levam à desistência são similares àquelas que levam ao cometimento dos crimes, então seria possível fazer previsões de longo prazo acerca dessa desistência.

Diversos estudos identificam um pequeno grupo de delinquentes que pratica uma larga proporção das atividades criminosas e que continua a praticar crimes numa taxa elevada ao longo de toda sua vida. Esses ofensores são denominados de “delinquentes crônicos”. Os mesmos estudos concluem pela importância de se identificar o quanto antes tais pessoas para prevenir comportamentos crônicos e persistentes. Como a prevenção não costuma estar entre as prioridades políticas, a questão que se coloca é que tipo de medidas podem ser adotadas para alguém que já iniciou no comportamento criminoso.

Uma vez que o ingresso no crime já tenha ocorrido, os esforços devem ser direcionados à limitação da duração, intensidade e gravidade das carreiras criminosas. Identificar fatores de vida e fatores cognitivos que contribuem à desistência pode servir como informação para subsidiar uma intervenção após a iniciação criminal. Adquirir uma melhor compreensão dos processos cognitivos que promovem a desistência pode ser útil no desenvolvimento de programas cognitivo-comportamentais eficientes. Habilidades sociais e cognitivas mais apuradas podem resultar no estabelecimento de laços sociais mais firmes e no aumento da integração social.

Um número cada vez maior de pesquisadores tem sustentado que há tanto estabilidade quanto mudança nos padrões ofensivos ao longo da vida. O fato de que as trajetórias criminosas de adultos não podem ser totalmente explicadas por suas experiências juvenis revela a importância da mudança e a necessidade de intervenções sustentáveis após a iniciação criminal para acelerar o processo de desistência.

Ainda não há muito consenso sobre a definição de desistência do crime. Discute-se se pode haver desistência após a prática de um único delito, se ela pode caracterizar-se pela redução da frequência de crimes ou de suas gravidades, e quanto tempo seria preciso para determinar com certeza que a desistência ocorreu.

MEISENHELDER (1977) definiu desistência como o efetivo afastamento de um padrão de comportamento criminal previamente desenvolvido e reconhecido subjetivamente. LOEBER e LE BLANC (1990) afirmam que antes da atividade criminal cessar completamente os delinquentes tornam-se mais especializados e se engajam em crimes de menor potencial ofensivo. BUSHWAY et all (2001) entende que desistência é um processo de redução da taxa de delinquência (estimativa de criminalidade) de qualquer nível para zero, ou seja, igual àquela dos não-delinquentes.

Como os eventos criminais muitas vezes dependem de fatores circunstanciais e chances, os autores sustentam que o processo de desistência deve focar-se na propensão a delinquir, e não nas mudanças na prática de crimes. Outros estudiosos trabalham com o conceito de desistência vinculado à ausência de práticas delitivas em determinados períodos de tempo ou determinadas idades. Entretanto, como esses conceitos variam de acordo com as pesquisas, é difícil estabelecer generalizações empíricas a partir deles, especialmente porque se baseiam em pontos de corte distintos.

Uma das questões-chave envolvendo a desistência do crime é o período de análise dos estudos. Quanto maior a extensão do período de análise, maior tende a ser a idade de afastamento do crime. Quando o período se estende até os 25 anos, a idade média de última prática delitiva é de 19,9 anos. Já quando o período de análise é estendido para 40 anos, a média de última condenação criminal é de 31 anos.

Como a maioria dos adolescentes não se torna um adulto delinquente, a fase da adolescência talvez não seja a ideal para o estudo do comportamento criminal persistente e da desistência. Embora seja possível estudar o processo de desistência utilizando dados retrospectivos, os dados prospectivos de longo prazo ajudam a estabelecer com maior precisão se a desistência ocorreu. Ainda assim, o caráter intermitente dos padrões ofensivos pode levar à ilusão de desistência.

A desistência normalmente é avaliada a partir do último ato delitivo. Ocorre, porém, que como a maioria das análises só acompanha os indivíduos por um período relativamente curto de tempo, é possível que ocorra uma falsa desistência. Alguns pesquisadores argumentam, então, que a desistência definitiva só ocorre com a morte.

Há uma distinção entre a interrupção ou suspensão da carreira criminal (“intermitência”) e a efetiva desistência. Padrões intermitentes de delinquência em carreiras criminais podem levar à falsa interpretação de que os delinquentes cessaram com a prática delitiva. Sucede que o delinquente pode parar de delinquir por um determinado período e depois reincidir. É plausível alegar que todas as carreiras criminosas têm algum grau de intermitência ao longo da vida, seja para uma maior, seja para uma menor taxa. Esses padrões de intermitência sublinham a importância de perceber a desistência como um processo.

A maioria dos estudos sobre a desistência utiliza critérios estáticos de medida, o que não leva em consideração as mudanças nas taxas de delinquência ou a progressão ao longo do processo de desistência. Com o passar do tempo, pesquisadores perceberam a importância de reconhecer a desistência como um processo gradual.  A cessação completa das atividades delitivas não costuma ocorrer de forma repentina, especialmente entre indivíduos que cometem muitos delitos desde muito jovens. Por essa razão, uma definição estática de desistência pode mascarar o progresso dos indivíduos através dos vários estágios do processo. Isso acaba fornecendo pouca orientação para iniciativas de intervenção, negligenciando o suporte nos períodos onde ela for mais necessária.

Ainda que alguns indivíduos possam parar de delinquir na mesma idade, suas carreiras criminosas podem ser muito distintas em termos de frequência, gravidade e extensão. Em função disso, a perspectiva estática da desistência está mais propensa a representar um período de não-delinquência temporária.

Poucos autores têm dado atenção às mudanças nos padrões individuais de comportamento criminal ao longo da vida. A importância desta abordagem é que os indivíduos estabelecem seus próprios controles, demonstrando novamente como a desistência deve ser vista como um processo. Pesquisas mais antigas costumavam focar-se numa abordagem entre indivíduos, contrastando aqueles que desistiam com aqueles que reincidiam no crime. Essas pesquisas geralmente chegavam à conclusão de que aqueles indivíduos com maior autocontrole e laços sociais mais definidos tinham menos chances de reincidir que os demais. O que falta nas pesquisas sobre a desistência não é o contraste entre desistentes e reincidentes, mas a compreensão dos fatores externos e internos que promovem o processo de desistência nos indivíduos.

Outra questão a ser levada em conta no debate é a de quem pode ser elegível para inclusão nesta análise. A inclusão na análise da desistência de delinquentes ocasionais ou situacionais, os quais possivelmente apresentam riscos menores de reincidência quando comparados com delinquentes habituais, pode aumentar o poder das estimativas de medidas de disposições cognitivas e laços sociais. O ideal seria basear-se no contraste entre dados com e sem delinquentes ocasionais, a fim de perceber como os resultados variam de acordo com o tipo de delinquente utilizado.

Alguns autores fazem uma distinção entre a desistência baseada em dados oficiais (prisões e condenações documentadas) e a desistência auto-referida, isto é, aquela baseada em informações providas pelo próprio indivíduo sobre a prática de delitos. O processo de desistência baseado em dados oficiais geralmente revela uma reação social ao comportamento delitivo, refletindo o critério utilizado pelas autoridades do sistema judiciário criminal para avaliar os riscos de reincidência. Uma comparação entre os resultados a partir do uso dos dois critérios poderia determinar se os resultados são divergentes.


Resenha do artigo “Desistance from Crime: Theoretical, Empirical, Methodological, and Policy Considerations” (Journal of Contemporary Criminal Justice, Sage, v. 23, n. 1, p. 5-27, fev. 2007), de autoria de Lila Kazemian, Phd em Criminologia pela Universidade de Cambridge/GBR e Professora do Departamento de Sociologia da John Jay College of Criminal Justice (Nova Iorque/EU). Disponível aqui.

CarloVelho

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