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O indeferimento das testemunhas abonatórias no Júri: sinal dos tempos


Por Iverson Kech Ferreira 


Por vezes, em casos tão complexos como os julgados pelo Júri, existem situações que somente apoiados pelos pormenores é que se chega a uma conclusiva opinião sobre os fatos ocorridos, suas motivações e implicações nas vidas envolvidas. Remontar o passado e os fatos que precederam o ato reconhecido como crime é lidar não somente com provas materiais e assegurar um nexo causal entre autor e resultado, mas sim, envolver-se com as suas primordiais causas e seus essenciais sentidos. Muitas vezes esse retorno escurece ainda mais os acontecimentos, o que se deve a uma individualizante consideração e interação com o fato ocorrido, trazendo pontos de vista subjetivos e que tendem a transfigurar o passado conforme suas experiências e expectativas.

É raro testemunhas, tanto de acusação quanto de defesa que considerem, abertamente, o fato de que entendiam a situação e suas motivações no momento em que essa ocorreu.

Noutro momento, ainda mais raro torna-se o excluir-se da situação vivenciada e transpor a barreira do subjetivismo que impõe, de certa forma, algumas arbitrariedades em forma de certezas absolutas. Muitas vezes, reescrever a história e os acontecimentos sobrepujam fatos menores que estão lá no passado e que são essência do acontecimento por via daquilo que marcou ou que, de toda forma, impressionou a testemunha que se ateve apenas e exclusivamente à situação mais danosa. As memórias falseiam e passam a frustrar a imagem do ocorrido por pequenos quadros sobrepostos uns pelos outros, pintados por uma mente que se esforça em compreender e lembrar aquilo que mais a afetou. A cognição, segundo Lev Vygotsky, passa por uma interpretação a partir da interação com o fato e com suas possibilidades e porque não, suas probabilidades.

A partir de informações no decorrer do processo, sejam elas interiores à área de julgamento ou trazidas por noticiários, contatos e pessoas diversas, a mente tende a interpretar certos dados que são jogados a sua frente, e que podem sugerir diversas realidades falseando memórias que tendem a interpretar e diagnosticar o ocorrido conforme as interações após o fato.

Destarte não é propriamente ao acontecimento que se esta julgando o caso mas sim, pelas palavras de testemunhas que diversas vezes alteram sua memória, não por própria vontade, mas sim, por reconhecer a situação por outros pontos de vista que não faziam e não fazem parte da cena principal, percebida pela testemunha. A sugestão feita por outrem pode estimular uma falsificação na memória que tende a aceitar o fato sugestivo como verdadeiro, criando assim as falsas memórias.

Entretanto, diversas são as possibilidades que envolvem casos julgados pelo grande júri, não podendo ser tratadas levianamente por qualquer pessoa que seja. Em muitos despachos há o prévio indeferimento das testemunhas abonatórias, ou seja, aquelas que não estavam no local do crime mas que podem trazer elementos, a priori considerados inertes ao caso concreto, mas ao final, que possam evidenciar os fundamentos e os reais motivos do acontecimento. Tais pormenores, excluídos de quaisquer falsas memórias, podem trazer ao julgamento informações acerca a vida dos indivíduos e suas dificuldades, suas lutas e aspectos sociais que revelam em parte, o subjetivismo dos envolvidos no crime.

Conhecer o autor do crime por intermédio dos testemunhos de sua vida é dotá-lo de elementos que são a essência do ser, que perfazem a própria vida em si. Testemunhas abonatórias raramente trazem ao caso concreto modificações em memórias e naquilo já produzido no processo, mas sim, encaminham uma urbanidade e respaldo ao júri, que tende a estudar por mínimo que seja um pouco da vida de cada um.

É embrutecedor e deveras instigante a negação de uma testemunha abonatória que seja, pois é nesta que pode estar toda a diferença, nela pode se esconder questões primordiais que ultrapassam o cerne do crime chegando aos motivadores de uma vida toda e de seus caminhos escolhidos ou não.

Nada fere a inquirição das testemunhas conceituadas como abonatórias aos preceitos trazidos pelos artigos 400, § 1º, e 411, § 2º, ambos do CPP, pois o júri não presenciou as audiências anteriores e a promoção das provas válidas, podendo mesmo assim, com a testemunha abonatória, ser produzida numa mesma audiência não trazendo atrasos ou situações que não sejam inerentes aos fatos. A vida e suas nuances são peculiares ao fato ocorrido, quer queira ou não.

Indeferir de maneira sistêmica tais testemunhos é considerar o processo penal em si como um mecanismo que se engendra a partir de um fato para uma única conclusão: julgar e condenar; não entender as minúcias que motivam inúmeros acontecimentos, é negar possibilidades de se conhecer a pessoa e sua trajetória. Na era midiática e suas influências em que se vive nos dias atuais isso é preocupante ao extremo.

Não conhecer o réu ou as circunstâncias de sua existência, sua história social e suas diferenças, um pouco de sua vida que testemunha sua passagem por este tempo significa empedernir e insensibilizar o julgamento que se torna cada vez mais autômato e maquinal, como o apertar de um parafuso.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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