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O intercâmbio entre o poder legislativo e o conhecimento técnico: uma urgência!

O intercâmbio entre o poder legislativo e o conhecimento técnico: uma urgência!

Fazer leis em um país de tamanha extensão territorial, como o Brasil, que possui tamanha pluralidade cultural e discrepantes realidades sociais, com certeza não é uma tarefa fácil. Sem a menor dúvida os membros do poder legislativo ultrapassam difíceis barreiras todos os dias. Entretanto, os agentes políticos não podem esquecer das alternativas que possuem, não só para obter auxílio em variadas temáticas, bem como para fomentar o debate legislativo. Refiro-me aos pesquisadores e estudiosos de assuntos técnicos específicos e de importância significativa nos projetos de lei.

No início do mês de setembro do ano corrente ocorreu, na Câmara dos Deputados, o encontro do Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na legislação penal e processual penal pelos Projetos de Lei no 10.372, de 2018, no 10.373, de 2018, e no 882, de 2019.

Ao acompanhar o debate do grupo de trabalho, chamou-me a atenção os pontos trazidos acerca dos vestígios, onde fora questionado se estes deveriam ser coletados apenas pelo perito criminal e/ou pelo médico legista. O parágrafo questionado é o § 3o, do Art. 158-A, do Projeto de Lei no 10.372, de 2018 (com o grifo na parte específica):

Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.

§3º Vestígio é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido pelo perito criminal ou médico legista em locais ou em vítimas de crimes para análise posterior, como copos, facas, armas, projéteis, estojos, vestes, pontas de cigarro, alimentos, equipamentos eletrônicos, manchas de sangue ou outros fluídos corporais, tecidos biológicos, dentre outros.

No debate, é apontado que não necessariamente quem realiza a coleta do vestígio irá descaracterizá-lo como tal. Ou seja, não necessariamente teria que ser realizado pelo perito criminal e/ou pelo médico legista. Ademais, é sugerido aumentar o rol de agentes públicos que poderiam realizar a coleta do vestígio. Mas não só isso. É exposto, ainda, a possibilidade da própria vítima recolher o vestígio e, consequentemente, sugere-se suprimir o rol taxativo das pessoas competentes para o recolhimento do vestígio. Isso causou-me uma certa angústia.

Os vestígios, em um primeiro momento, devem sim ser coletados pelos peritos criminais ou pelos médicos legistas. Eles são os responsáveis, que possuem o conhecimento e a competência para tal. Cada vestígio deve ser recolhido, acondicionado e transportado de maneira específica, a fim de garantir a viabilidade de sua utilização futura. Sabe-se que, em alguns casos, os policiais realizam a coleta dos vestígios, mas isto assim não deveria ser. Aos agentes policiais compete assegurar o isolamento adequado do local de crime, até a chegada dos peritos, os quais realizam a coleta.

Em relação à possibilidade da vítima e/ou do autor intrometer-se no curso da coleta de vestígios e na investigação, acredito que não exista qualquer espaço de debate. Em um contexto processual penal não se pode pensar na possibilidade da vítima e/ou do acusado realizar qualquer coleta de material a ser submetido à perícia, bem como auxiliar em qualquer processo investigativo.

Isso tudo desvela um assunto que, embora seja, em certa medida, óbvio, merece destaque. Os membros do legislativo não tem a obrigatoriedade de possuir um conhecimento detalhado e específico acerca de todos os assuntos que ali são debatidos. Seria humanamente impossível ter o discernimento pleno sobre assuntos tão variados. Contudo, há sim a possibilidade de solicitar que pesquisadores e conhecedores das temáticas compareçam às casas legislativas, principalmente em audiências públicas, para fomentar a discussão e esclarecer quaisquer dúvidas.

O questionamento acerca da competência dos peritos e médicos legistas de coletar os vestígios não há qualquer razão de ser. É notório que a eles deve ser atribuída dada atividade. Retirar da descrição legal a competência específica de quem pode coletar os vestígios poderia causar sérios problemas ao sistema de justiça criminal. Indivíduos sem qualquer conhecimento poderiam realizar a colheita de elementos materiais para posterior análise pericial. A cadeia de custódia, sobre a qual já recaem diversos questionamentos atualmente, estaria totalmente flexibilizada e relativizada. Conhecimentos construídos ao longo de anos no âmbito das ciências forenses seriam ignorados.

Por isso, uma aproximação entre o poder legislativo e pesquisadores de diversas áreas é de extrema importância não só para fomentar um debate mais coerente dentro do processo legislativo, mas também para dar voz à quem tanto tem a contribuir para com o contexto político-social. Isto requer urgência. Questionar e debater é enriquecedor para um país, principalmente quando da elaboração de leis. Esclarecer nunca é demais.


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Maria Eduarda Azambuja Amaral

Doutoranda em Ciências Criminais (PUCRS) bolsista CAPES/Brasil do INCT Forense. Mestre em Biologia Celular e Molecular (PUCRS). Especialista em Perícia Criminal e Ciências Forenses (IPOG). Biomédica (UFRGS) e Graduanda em Direito (PUCRS).

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