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O juiz e seus superpoderes

Por Daniel Kessler de Oliveira

Não é de hoje que o ser humano necessita se apegar em algo estranho à normalidade para atenuar suas angústias e acalentar o sofrimento gerado por um cotidiano, muitas vezes, eivado de dificuldades.

Daí se pode explicar alguns apegos religiosos, algumas crenças em níveis demasiados, bem como o sucesso de obras de ficção que tratam de indivíduos dotados de superpoderes, imbuídos de salvar a população das atrocidades de mal feitores.

Ocorre que vivemos o mundo real, não temos super-heróis, mas temos, sim, os “malfeitores”, pessoas que cometem crimes, transgridem as normas e, com estes, precisamos lidar, necessariamente, através de um processo penal.

Num primeiro momento, devemos superar o manto de hipocrisia que abriga muitas pessoas em nossa sociedade e assumir que todos, ou quase todos, em uma sociedade como a nossa, cometem deslizes e transgressões, em determinados níveis.

Desse modo, o que varia é a forma do crime, que faz com que, muitas vezes, o delito mais violento seja digno de repulsa, enquanto outros acabem por ser tolerados.

Todavia, existem casos, onde o mesmo crime, varia de nível de repulsa de acordo com a pessoa do criminoso, em especial com a sua classe social.

Mas não é este o ponto que buscamos abordar aqui. Pretendemos ter como foco, a crença nos Super-heróis que serão capazes de salvar a sociedade destes mal-feitores, devidamente selecionados.

Aqui não se pretende qualquer crítica a qualquer instituição ou a qualquer servidor, mas enquanto sociedade, a primeira coisa que precisamos saber é que não podemos seguir com uma crença em determinados salvadores da nação, pois isto, certamente, nos trará mais problemas do que soluções.

Profissionais sérios, dedicados e competentes, esperamos contar em todas as esferas do serviço público, mormente na área da segurança, mas isto não lhes tira a falibilidade, os caprichos e os preconceitos inerentes ao ser humano.

Não é o Processo Penal, tampouco o Direito Penal palco para estas criações mirabolantes, ainda que, embaladas por motivações, aparentemente, louváveis. Neste sentido, já nos ensinava GARAPON (1997, p. 312), referindo que

“a perfeição do direito está no reconhecimento de sua imperfeição. Qualquer vontade de ultrapassar esta ignorância fatal do direito, mesmo que motivada por intenções louváveis, está a enveredar pelo caminho que leva ao abandono do Estado de Direito.”

Contudo, a carência de esperança faz com que criemos heróis, seja no âmbito da investigação, seja na função imbuída de realizar a acusação ou, ainda, na pessoa a quem caberá o julgamento de um fato criminoso.

Quando alçamos este último a categoria de herói, estamos diante de um grave problema, pois não mais nos botamos a questionar suas decisões e acreditamos cegamente em todas as suas atitudes e em todas as suas intenções.

Com isto, muitos julgadores, sob aplausos da sociedade, desprezam a legislação, decidem de acordo com o que entendem, endeusam o “livre convencimento”, “interpretam” formas de maneira utilitarista, ignoram preceitos constitucionais e se valem do discurso do combate ao crime para justificar as suas práticas abusivas na condução do processo penal.

O contraditório e ilógico nestas práticas é que, justamente, o individuo que deveria zelar pelo respeito às leis e aos direitos constitucionais, ignora tais preceitos e daí surge um cenário extremamente perigoso.

Um julgador que atua em desprezo dos limites que lhe são impostos, tende a um arbítrio. E de nada adianta lutarmos para conseguir um executivo e um legislativo democráticos para cairmos em uma ditadura jurisdicional.

O judiciário nos dias atuais goza de um nível tão amplo de respeitabilidade social, principalmente quando se trata de uma relação para com os demais poderes, que possui ampla liberdade para interferir nos atos destes e determinar aquilo que entende por justo e correto.

Vale esclarecer que não se está querendo enfraquecer a atuação do judiciário, mas apenas frisar que não podemos seguir acreditando nos superpoderes e nos ideais mágicos de plenitude e de defesa de todos.

Um judiciário atuante sem limites é tão ou mais perigoso que os atos praticados por membros do legislativo e do executivo de forma ilimitada.

Membros mal-intencionados, infelizmente, teremos em todas as esferas, não havendo um Poder público que esteja imune totalmente a isto. Dessa forma, acreditar cegamente na bondade de um destes, pode nos conduzir a desfechos drásticos.

Para quem assiste de fora, o discurso pode ser sedutor. Mas e se um dia, formos nós as vítimas desta arbitrariedade travestida de “bondade”? Valendo-se do questionamento de Agostinho Ramalho Marques Neto, indagamos:

“Quem nos defende da bondade dos bons?”

Não nos restará muito o que ser feito, quando aquele que deveria fiscalizar as regras do jogo, assumiu o papel de “salvador da pátria” e com apoio popular, despreza limites neste jogo punitivo.

Devemos zelar por uma maturidade democrática, que não tolere exercícios de poder sem limites, independente da esfera de atuação.

A sociedade que tanto é oprimida por diversos setores do poder público e, não raras vezes, é desrespeitada pelo próprio Judiciário, não pode conceder a este um status de salvador sobrenatural. Para explicar este fenômeno, poderíamos recorrer ao que, já há muito, nos ensinou TOCQUEVILLE (2000, p. 12), dizendo que: 

“não há nada mais familiar ao homem que reconhecer uma sabedoria superior naquele que o oprime.”

Portanto, devemos duvidar de tudo aquilo que pretende nos impedir de questionar, devemos ter desconfiança em tudo aquilo que se apresenta como salvador, como imune a erros e dotado apenas dos melhores dos sentimentos e das mais louváveis intenções.

Sinto decepcionar os desavisados, mas deixemos os super-heróis nas telas dos cinemas, porque por aqui, ainda temos muito trabalho a ser feito, para que possamos ter profissionais sérios, competentes e que atuem respeitando os limites que a lei e a constituição determinam para a sua atuação.


REFERÊNCIAS

GARAPON, Antoine. O bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_Colunistas-DanielKessler

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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