O julgador “porque sim” (e as constantes arbitrariedades do Poder Judiciário)
Por Michelle Aguiar
“A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens.
Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos.
Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.”
(Miguel de Cervantes)
Quando falamos em processo penal, imprescindível é observar a figura que o julgador exerce. Notório é que este deve atuar de maneira justa e imparcial, tendo em vista que a imparcialidade é uma das garantias trazidas pelo Sistema Acusatório, e pressupõe um juiz independente e desvinculado de uma persecução penal de ofício. Porém, esta ideia de imparcialidade e independência por inúmeras vezes não se concretiza na prática.
A despeito disto, um exemplo comumente visto seria o que Amilton Bueno de Carvalho denomina como figura do pai-julgador. Segundo o autor, na relação com a comunidade, o juiz acaba assumindo, no (in)consciente do povo, a figura do pai (e às vezes passando pelo papel de juiz-divindade), pois ele é aquele que pune, que repreende, que autoriza o casamento ou determina a separação [1]
Outro típico exemplo que traduz essa quebra de imparcialidade seria a noção explicitada por Alexandre Morais da Rosa: “Não raro, os juízes assumem o papel de cavaleiros da prometida plenitude ou completude lógica, noutra dimensão, e a partir dessas crenças congregam em si o poder de dizer o que é bom para os demais mortais (neuróticos por excelência)”.[2]
Além destas situações em que o juiz pode se enquadrar, ouso aqui criar uma nova tipologia de julgador que há muito tempo tenho observado e considerado existir, porém que por inúmeras vezes passa despercebido ou simplesmente por força da habitualidade, nem sequer é confrontado. Afinal, as pessoas parecem se conformar com as arbitrariedades existentes.
Intitulo esta ilustre figura como o julgador “porque sim”.[3]
Pode parecer um tanto quanto jocoso, mas quando se trata da liberdade humana não há espaço para brincadeiras. Explico de maneira mais clara, citando alguns exemplos, a fim de posteriormente adentrar no conceito em questão.
Que advogado criminalista nunca se deparou com uma destas seguintes hipóteses? “Decreto a prisão preventiva, tendo em vista que os requisitos previstos no artigo 312 do CPP estão presentes” ou, ainda “decreto a prisão preventiva, ante a presença dos indícios mínimos de autoria e materialidade”.
Mais um exemplo corriqueiro: “A defesa não comprovou de maneira adequada a presença dos requisitos necessários para a configuração da absolvição sumária. Por conta disto, denego o pedido.”
Ainda é possível citar mais exemplos: “Entendo que a periculosidade do agente e a necessidade da custódia são necessárias. Não cabendo, portanto, relaxamento de prisão.”
Terminado este compilado de exemplos, parece que estamos diante de histórias fantasiosas e abstratas. Contudo, é exatamente esta a realidade ao qual nos deparamos constantemente na prática. Todos possuem as mesmas semelhanças: ausência ou insuficiência de fundamentação, padronização processual e uma tendência inquisidora-acusadora do julgador. Em outras palavras, propensão a acreditar que o réu é culpado desde o início do processo, sendo dificilmente esta visão modificada posteriormente.
O julgador “porque sim” é, portanto, o juiz que decide conforme a sua convicção, porém não a externaliza, ou seja, não fundamenta. Acaba por ferir garantias e direitos fundamentais do acusado e afronta diretamente dispositivos constitucionais e legais.
Deixa, portanto, a defesa abandonada à sua própria sorte, não se importando em respeitar as regras do jogo[4]. Ele quer que seja assim, ele decide assim. Por quê? Porque sim! Para o juiz, isso é mais do que uma explicação, não é preciso dizer mais. E coitado de quem quiser refutar ou questionar os seus motivos. O orgulho deste tipo de magistrado é gigantesco. O ego, então, nem se fala.
Neste momento a defesa caminha para um colapso. Restando apenas dois caminhos possíveis para seguir:
(a) questionar os fundamentos do juiz: porém, tal manobra pode gerar um grande risco ao processo, tendo em vista que há a probabilidade de que o julgador se irrite ou se sinta afrontado. A consequência é este se tornar irredutível no campo processual penal, não aceitando nenhum tipo de argumento da defesa e indeferindo todos os requerimentos.
(b) não fazer nada: engolir em seco aquela injustiça e rezar pela boa vontade do julgador, assim quem sabe não há uma chance de acolhimento dos futuros pleitos defensivos e a tão desejada absolvição. É desanimador ter que relatar isso ao seu cliente ou assistido, e ainda ser questionado por ele da seguinte forma: “Mas não está na lei? Você disse que estava, então por que o juiz não segue?” Trata-se de um dilema verdadeiramente cruel.
Não se trata de tarefa fácil você ter que se ater a dizer que não sabe, porque é impossível saber o que se passa na cabeça do julgador, ainda mais quando ele não dá nenhum sinal de que caminho irá trilhar. Simplesmente diz “porque sim” e você que se conforme com esta informação.
Além das consequências processuais penais, ainda acarreta a possibilidade do enfraquecimento da visão que o cliente tem sobre o seu advogado. Afinal, quem consegue explicar para o acusado que as arbitrariedades e o totalitarismo no processo penal estão constantemente presentes, e ao tentar coibir isto, nada acontece? Ou pior, acontece, e o seu cliente sai prejudicado?
É de conhecimento geral que há a possibilidade de recorrer destas decisões. Contudo, este caminho de tentar anular aquele ato também não está isento destas arbitrariedades. Isto porque a prática é tão comum que os próprios Tribunais não encontram qualquer falha.
Logo, há grande delonga para apreciarem o seu recurso e quando finalmente se consegue que este seja verificado, acaba muitas vezes por ser improvido. Isto porque o judiciário inteiro está impregnado com esta corriqueira prática, o chamado “automatismo decisional.”, ou seja, a reiteração da prática decisória por parte do julgador, despida de qualquer análise profunda do caso concreto. Certo é que este acaba julgando de maneira mecânica e opta por decidir sempre do mesmo modo, sem sequer olhar o processo.
Infelizmente é a este tipo de situação que o advogado está frequentemente submetido. Assim, é preciso que o julgador fundamente clara e precisamente suas decisões. O convencimento do magistrado pode ser livre, mas este convencimento fica limitado formalmente à escrita, à fundamentação motivada, é o que prevê o artigo 93, IX da Constituição Federal.
Em suma, por mais abarrotado de processos que esteja o Poder Judiciário, isto não se traduz em justificativa plausível para haver completo descaso com relação à liberdade do acusado. É preciso analisar cada caso com extrema cautela, para que equívocos não sejam cometidos, tendo em vista que o próprio sistema penal vigente já se traduz em uma grande injustiça.
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[1] CARVALHO, Amilton Bueno. O juiz e a jurisprudência: um desabafo crítico. In: Bonato, Gilson (Org.). Garantias constitucionais e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 912.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 29.
[3] Esta noção do fator “porque sim” tem como inspiração textos trazidos por Lenio Streck e Alexandre Morais da Rosa em conjunto com André Karam.
[4] Conforme leciona Alexandre Morais da Rosa, “No jogo processual as regras são impostas pelo Estado e sustentadas pelo magistrado” (MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal.2ª Ed. Santa Catarina: Rei dos Livros, 2015, p. 24.