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O medo e os direitos humanos

O medo e os direitos humanos

O medo ameaça: se você ama, terá Aids; se fuma, terá câncer; se respira, terá poluição; se bebe, sofrerá acidentes; se come, terá colesterol; se fala, terá desemprego; se caminha, terá violência; se pensa, terá angustia; se duvida, terá loucura; se sente, terá solidão.

Para ter fôlego, é preciso ter desalento. Para levantar tem que saber cair. Para ganhar tem que saber perder. Temos que saber que assim é a vida e que você cai e levanta muitas vezes. Alguns caem e não levantam nunca mais, geralmente os mais sensíveis, os mais fáceis de se machucar, as pessoas que mais dor sentem ao viver. As pessoas mais sensíveis são as mais vulneráveis.

Em contrapartida, esses filhos da puta que se dedicam a atormentar a humanidade, vivem vidas longuíssimas, não morrem nunca, porque não têm uma glândula, que é bem rara e que na verdade se chama consciência. É a que nos atormenta pelas noites.

Eduardo Galeano

Ao longo da história do mundo, muitas ideologias surgiram. Seus idealizadores trabalharam para disseminar suas ideias para que outras pessoas pudessem tomar como verdades universais e trilhar os caminhos que os levassem até a conquista.

Ideologias são lançadas de diversas formas: por autoridades Estatais, grupos revolucionários, classes sociais… Isso se percebe ao trazermos à baila Revoluções como a Gloriosa, a Francesa, a Industrial, a Científica ou até mesmo viajar no tempo e demonstrar as batalhas e a liderança de Alexandre, antes de Cristo. A busca por concretizar ideologias e tomar essas como verdade universais nunca parou.

Falar de direitos humanos é falar de uma ideologia. Em que pese tenha se concretizado muitos dispositivos derivados da ideia humanista, esses ainda são idealizados em busca do aperfeiçoamento ou em face da mudança das circunstâncias. A luta é constante para sua concretude de forma plena.

Para tanto, nesta linha de pensamento sobre ideologias, falaremos do medo. Ele é produzido pela imaginação, assim, logicamente ele não existe. Por isso, busca-se demonstrar o papel e o protagonismo do medo em relação ao impedimento de conquistas de direitos.

Ele é um dos principais estados que faz o homem reagir. Quando alguém sente medo, o corpo estimula um mecanismo que ativa a racionalidade para que o indivíduo se salve daquilo que o ameaça. O cérebro não pensa, apenas manda um choque de adrenalina que faz o homem agir impulsivamente.

Ainda, o medo poderia significar uma característica que muitos se envergonham, como alguém que se julgue covarde. Um fraco, que lhe falta bravura.

Ele é sinônimo de pavor, fobia, horror, terror, pânico, temor, susto, aversão, aterramento, amedrontamento, receio, apreensão, preocupação, ansiedade, inquietação, incerteza, dúvida… todas essas e mais palavras poderiam automaticamente descrever o sentimento.

Quer algo mais pavoroso que o próprio medo? Ilustra-se a pergunta com uma frase do texto “murar o medo” de Mia Couto:

há, neste mundo, mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas?

Sendo assim, a cultura do medo é um ponto chave para propagar este sentimento à sociedade. A ideia de que a sociedade é violenta, perigosa, oportunista e leviana é implementada em veículos de informações, como jornais e internet, fazendo com que seja tomada como verdade, pelo menos na consciência coletiva.

Para tanto, a partir desse discurso, são vendidos meios de seguranças públicas, implementado a ideia de que a população precisa se proteger, sua casa precisa ser cuidada, seu carro precisa ter um seguro e o bandido deve ser preso.

A questão é que, buscando centralizar ainda mais a ideia, deve ser pensada que a ideologia do medo faz sentir que alguém deve nos “salvar” desse grande perigo imaginado chamado “os outros’’.

Os outros são aqueles que “fazem o mal” e que não se sabe ao menos seus nomes; aqueles que estão do outro lado da fronteira; aqueles que, quando presos, presume-se que estão apenas pagando pelo que cometeram; aqueles que tratamos como inimigos.

Inimigos, todos aqueles que nos fazem desiguais, indiferentes.

Nas questões sociais, políticas, institucionais, ele afasta, ele faz do outro um estranho, ele propaga desigualdade, a manifestação da desigualdade desmedida faz perder o sentimento de semelhança. Ele provoca aversão ao inimigo imaginário.

Para tanto, de modo que possamo respeitar os direitos humanos, devemos ter como ideia principal a necessidade de olhar para o outro, evidenciando a dignidade, liberdade, igualdade, principalmente, praticando a empatia. 

Assim, quando uma sociedade é regida por medo do outro, ela nada numa corrente completamente oposta às ideias de igualdade. Há uma linha imaginária que os separa. De um lado, uns; de outro, aqueles que “nada temos a ver”.

Quando se quer que uma criança respeite suas regras, é comum a prática do medo. Basta ameaçá-la de que, se ela não fizer o que estão mandando, sofrerá consequências horríveis. Assim, a criança passa a imaginar seus monstros e, por temê-los, faz aquilo que lhe é imposto.

Com adultos, aparentemente, funciona de modo semelhante. Porém, seus monstros são criados por “gigantes”, sejam eles Estados, mídias, discursos políticos ou até por um jovem que luta pelo armamento. 

De forma prática e até racionalista, são duas ideologias que se chocam. E, ao chocar-se, afastam-se para cada vez mais longe. A diferença é que a ideologia dos direitos humanos une pessoas por entender que se deve propagar a igualdade. 

Os direitos humanos são barrados na porta de entrada do medo.

Para finalizar, uma parte de um texto de Mia Couto:

(…) A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível. (…)

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo, um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. (…)

E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.


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Ana Flávia Silveira

Pós graduanda em Filosofia e Direitos Humanos.

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