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O mito do progresso pela racionalidade e a necessidade de resgate de valores

Por Felipe Faoro Bertoni

Durante muito tempo (e ainda há quem assim pense) a humanidade elegeu como crença uma razão totalizadora e soberana, que teve vigência, principalmente, desde o século XVII, começando a apresentar sinais de desgaste em meados do século XIX. No período assinalado, a subjetividade, os sentimentos e a emoção foram considerados fatores despiciendos para a tomada de decisões dos seres humanos, tendo sido tais influências relegadas para um plano secundário em detrimento de um conhecimento superior, que poderia ser alcançado somente por meio da racionalidade[1].

Na verdade, a aquisição do conhecimento, na modernidade ocidental, teve como diretriz o modelo galilaico-newtoniano, o qual considerava a ciência como campo privilegiado para o desvelamento de verdades, sacralizando, com isso, a crença na verdade científica em substituição à religiosidade[2].

De fato, há de se reconhecer que o desenvolvimento tecnológico, aliado à crença no racionalismo, trouxe inúmeros benefícios para o homem e para a sociedade, proporcionando avanços de valor inestimável sem os quais não se poderia imaginar atualmente a vida em comunidade.

Contudo, o mito do progresso social com base na racionalidade pura começou, aos poucos, a ruir. Ilustrativamente, o desenvolvimento da psicanálise atuou no sentido de demonstrar a influência da subjetividade nas ações humanas, bem como a impossibilidade de dissociação completa da razão e emoção[3].

No mesmo sentido, os achados relativos à Física Quântica[4] foram de extremo relevo na ordem do referido giro paradigmático, eis que trouxeram à tona a ideia de descontinuidade, contrária à ideia de continuidade na qual se fiava a Física Clássica. Com isso, abriu-se espaço para interpretação de elementos localizados nos “entre-lugares”, ou seja, espaços em que não vige a soberania de um conhecimento racional dominado por uma verdade absoluta, mas sim lugar de exercício de uma conjunção entre conhecimentos até então opostos.

O surgimento dessas ciências, bem como o desenvolvimento de outros conhecimentos, fizeram com que houvesse uma espécie de relativização das verdades absolutas em face da mera possibilidade de determinação da veracidade dos fenômenos. Outrossim, demonstrou o equívoco procedimental e estrutural da tentativa de separação total de razão e emoção, objetividade e subjetividade.

Em paralelo, a má utilização da tecnologia[5], ocasionando efeitos nefastos,[6] também contribuiu também para a crítica do racionalismo moderno puro.

A realidade empírica do mundo no século XX desmontou as ideias de certeza construídas na modernidade. Este momento da história social (pós-modernidade, modernidade tardia ou modernidade reflexiva) reflete complexidade, multiculturalismo, uma sociedade que vive em um ritmo alucinado, movida por questões financeiras e que faz transparecer a violência e os riscos trazidos pela crença no projeto científico, que promoveu desde a chuva de bombas da primeira guerra mundial ao projeto armamentista da Guerra Fria. O fim do absoluto nos levou à compreensão de um tempo de insegurança.[7]

A globalização é a imagem e o espelho desta sociedade. João Gaspar Rodrigues entende a globalização como “um processo multidimensional e interativo de mudanças econômicas, políticas e culturais através do mundo, resultando em profunda interconectividade social, bem como, criando oportunidades para confrontação entre os povos[8]. Um dos problemas da globalização e de toda a complexidade que a cerca é o excesso midiático na veiculação de informações, impregnando um universo de desilusão total[9]. Vivemos em uma sociedade global em que nada é certo, balizada pela incerteza e pelo risco.

Nesse sentido, cabe salientar a ocorrência de um giro paradigmático que ocasionou o deslocamento de uma perspectiva estritamente racional para uma aproximação subjetivista entre ser e devir[10]. Acerca dessa transição na interpretação da realidade, “é possível falar, se não de uma epistemologia da incerteza, pelo menos de uma convicção segundo a qual, em vez de verdades universais e imutáveis, estamos diante de interpretações narrativas[11]”.

No que diz respeito às características dessa nova forma de pensamento, em que há a relativização da racionalidade cartesiana, impende registrar que a busca por conhecimento, no âmbito acadêmico e científico, é pautada pela interdisciplinaridade, havendo espaço constante e crescente para o entrecruzamento das mais diversas áreas do conhecimento. Nesse sentido, para que os fatos sociais sejam devidamente apreendidos, dentro de sua crescente e constante complexidade, faz-se necessária a negativa de análise do objeto de estudo individualmente dissociado de fatores externos. Pelo contrário, devem ser consideradas todas as particularidades e peculiaridades do fenômeno, assim como as circunstâncias e elementos metafísicos que circundam e integram a análise[12].

Fatores como a extrema aceleração e imediatismo, próprios das sociedades contemporâneas, também devem ser considerados, visto que proporcionam um descompasso entre o campo das ideias e o das necessidades práticas, trazendo à tona diversas sensações peculiares nunca antes experimentadas[13]. Deste modo, alguns fenômenos necessitam de amplo debate, sob diversas perspectivas, para que a multiplicidades de fatores determinantes e relevantes sejam compreendidos não como verdade absoluta, mas sempre com uma pretensão de verdade ou mera possibilidade de compreensão de uma verdade.

Por fim, importa destacar que não se deve ter como escopo a prevalência da subjetividade sobre racionalidade ou vice-versa, o que de fato se busca é uma equiparação valorativa, integrativa e interpretativa da completude do pensamento humano. Não se pode cair no reducionismo da crença absoluta na razão moderna como solução para os conflitos terrenos, nem tampouco se deve abrir mão da racionalização e sistematização dos aspectos e questões quotidianas.

Deve-se tomar conhecimento da complexidade da natureza humana e das questões sociais, buscando compreendê-las como totalidade, sem, contudo, incorrer em uma violência desarrazoada e totalizante, alicerçada em pressupostos simplistas, incapazes de reconhecer com perspicácia a dinâmica social e os fatores da complexidade atual.

No campo da dogmática jurisdicional, é imperioso a superação de dogmas reducionistas, os quais possuem força autoritária para a resolução de conflitos complexos. A melhor solução nem sempre é a mais simples e não devemos nos contentar com a saída mais fácil, exigindo sempre um raciocínio complexo e completo.

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[1] POZZEBON, Fabrício. Imparcialidade, verdade e certeza no processo penal: o mito da motivação judicial objetiva. In: FAYET, Ney; MAYA, André Machado (org.). Ciências Penais e Sociedade Complexa. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008. p. 198.

[2] GAUER, Ruth. A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.  pp. 1-2.

[3] GAUER, Ruth. Crítica à racionalidade: metamorfoses e ilusões do progresso.  In: GAUER, Ruth (org.). Criminologia e Sistemas Jurídicos Contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.. p.23.

[4] Não se pretende reduzir a complexidade das teorias citadas no presente estudo, apenas, procura-se trazer suas ideias centrais demonstrando como serviram de contributo à queda do racionalismo e resgate da subjetividade.

[5] Utilização de energia nuclear para a criação de bombas atômicas, utilização de aeronaves como armas de destruição (“Kamikazes”), etc.

[6] GAUER, Ruth. A fundação da norma. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. pp.132-3.

[7] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009 pp. 140-141.

[8] RODRIGUES, João Gaspar. Segurança Pública e Comunidade: Alternativas à Crise. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2009. p. 55.

[9] GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p. 143.

[10] Nesse sentido indicamos a leitura de BAUMER, Franklin L. O pensamento moderno europeu. V. I, Séculos XII e XVIII. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. pp. 163-82.

[11] GAUER, Ruth. A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004. pp. 8-9.

[12] POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A Crise do conhecimento moderno e a motivação das decisões judiciais. In: GAUER, Ruth (org.). Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p. 231.

[13] VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. pp. 54-7.

Felipe Faoro Bertoni

Advogado (RS) e Professor

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