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O papel das Agências Judiciais no (des)encarceramento: somos todos responsáveis?

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Na semana passada, mais precisamente na quinta-feira, dia 30 de julho de 2015, iniciou no Rio Grande do Sul, na capital, em Porto Alegre, o projeto-piloto das chamadas audiências de custódia, inclusive, com a presença do Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, conforme vem ocorrendo em outros estados da federação.

Sempre defendi a implementação da audiência de custódia, não apenas porque conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tratado internacional assinado e ratificado pelo Brasil, mas, sim, e, principalmente, pelo efeito (des) encarcerador que tal medida poderia revelar.

O PLS 554/2011, o qual ainda se encontra tramitando, ao que se sabe, tem por objetivo alterar o art. 306 do CPP, obrigando que o preso em flagrante delito seja conduzido à presença do Juiz no prazo de 24 horas após a prisão, quando, então, ouvidos o Ministério Público, um Defensor e o próprio preso, serão examinadas a legalidade do flagrante e a necessidade cautelar da custódia,[1] daí advindo o nome ‘audiência de custódia’.

A Rede Justiça Criminal,[2] em parceria com diversas organizações, no ano de 2013, produziu informativo exclusivo na defesa da aprovação do referido PLS, apontando para a necessidade premente e urgente de efetivação da chamada ‘audiência de custódia’, para tanto, trazendo 10 razões à aprovação do Projeto de Lei: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; a possibilidade de relaxamento imediato da prisão ilegal; análise pontual da necessidade e legalidade da prisão, com a verificação de eventuais maus tratos sofridos pelo preso; garantia do contraditório; autuação em apartado do depoimento prestado neste ato; proibição de inquirição quanto ao mérito da demanda; presença obrigatória de todos os atores processuais ao evento; verificação das práticas e procedimentos policiais; combate à superpopulação carcerária e, por fim, garantia de que a pessoa permaneça presa pelo menor tempo possível e somente o necessário.

Entretanto, na semana passada também, ao ler artigo publicado no site do Consultor Jurídico,[3] o qual dá conta de que a Lei nº 12.403/11, que alterou o Código de Processo Penal no que diz com a introdução das chamadas medidas cautelares diversas da prisão não representou redução de encarceramento, o que, evidentemente, os dados podem confirmar, afinal, a população carcerária brasileira só aumentou após esse marco, tanto que alcançamos, segundo alguns, a terceira posição no ranking dos países que mais encarceram no mundo; e que as audiências de custódia estão revelando redução singela e tímida no índice de encarceramento, considerei que talvez os tantos benefícios advindos da sua instituição poderiam não se perfectibilizar, pois esbarrariam em algo que não gostamos muito de ponderar: a mentalidade inquisitória.

É interessante que quando Zaffaroni[4] desconstrói a legitimidade do nosso sistema penal e convoca para a necessidade de uma resposta marginal com o intuito de conter o genocídio em andamento dos sistemas penais latino-americanos, dá conta de que o verdadeiro exercício de poder de um sistema penal não é o negativo ou repressivo, mas, ao contrário, o positivo ou configurador. E, nesse norte, fundamental é o papel de estigmatização e condicionamento produzido pela criminalização, mas, também, das cadeias (presídios) como máquinas de deteriorar, das agências executivas (segmentos institucionalizados não judiciais) como máquinas de policiar e das agências judiciais como máquinas de burocratizar.

Em relação às agências judiciais, afirma o seu processo de formação burocrática em contraponto ao das agências executivas, aduzindo que:

“O processo de treinamento a que é submetido é igualmente deteriorante da identidade e realiza-se mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder: solenidades, tratamentos monárquicos, placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc. A introjeção destes sinais de falso poder pode dar-se precocemente na própria universidade, mas, o mais comum, é que o treinamento comece na hierarquia inferior da própria agência. De acordo com a forma pela qual se estrutura a agência, os “cadetes” judiciais são treinados como juízes de menor valor ou municipais ou como empregados administrativos. O certo é que, ao alcançar uma categoria equiparável à de oficial das agências militarizadas, o indivíduo já deve ter internalizado os modelos da agência e deve responder às exigências do papel que lhe for atribuído a partir de uma adequada manipulação da opinião pública: assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobriedade em tudo, suficiência e segurança de resposta e, em geral, um certo modelo de “executivo sênior” com discurso moralizante e paternalista ou uma imagem de que, na devida idade, responderá a esse modelo.” (ZAFFARONI, 1991, p. 141).

Não por menos sabemos que o modelo inquisitório está alicerçado na figura do chamado Juiz Inquisidor, cuja centralização de papeis em uma única pessoa, alcança, inclusive, a gestão quase que autônoma da prova. Nesse sentido, Carvalho[5] expõe:

“Em sua forma jurídico-penal, o sistema inquisitório se estrutura em economia de poder cujo protagonismo é exercido pelo Magistrado. A relação que se estabelece entre julgador e julgado é estruturante, pois traça os limites de atuação dos sujeitos processuais. Aliás, todos os demais atores desta cena processual são coadjuvantes, detentores de papeis secundários, pois a resolução do caso se vincula fundamentalmente à técnica do Magistrado em descobrir a verdade que o acusado é o exclusivo detentor. O poder, portanto, é altamente concentrado e direcionado exclusivamente contra o suspeito-acusado-réu.”

Por isso, conforme já asseveramos em outra oportunidade,[6] nos parece imperiosa uma virada na construção da mentalidade dos atores e operadores do sistema criminal, pois estes são as engrenagens que põem o sistema em atividade. São as peças-chaves sem as quais o sistema encontrará dificuldades em operar. Precisamos compreender que as nossas ações e a nossa leitura são também inteiramente responsáveis pelo estado das coisas na atualidade. Não é só ao Estado (enquanto Executivo) a quem precisamos demandar, a fim de buscar a implementação e a efetivação dos direitos mais simples do indivíduo, mas é ao Estado e aos seus atores e operadores que tal medida se impõe.

Afinal, ninguém ingressa sozinho (em regra) em uma penitenciária. Antes disso, essa pessoa já perpassou por várias agências e pelo sistema em si mesmo. Que as audiências de custódia, então, possam servir como medidas redutoras de danos e não como paliativos relegitimadores de um sistema que só faz produzir dor a todos os seus envolvidos.

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[1] IBCCRIM, Editorial. O esforço de Sísifo e a audiência de custódia. Boletim do IBCCRIM, Nº 252, p. 1, São Paulo, novembro 2013.

[2] Disponível aqui. Acesso em: 05 mai. 2014.

[3] Disponível aqui. Acesso em: 29 jul. 2015.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.  

[5] CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[6] CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. Os Direitos Humanos na Execução Penal e o Papel da Organização dos Estados Americanos (OEA). Presídio Central de Porto Alegre, Masmorra do Século XXI. Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.

Mariana

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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