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O poder paralelo: as milícias e a busca pelo lucro


Por Iverson Kech Ferreira


Em artigo anterior, nossos estudos nos levaram a compreender uma formação além do Estado projetada pela força e pela busca do lucro, em um mercado desconsiderado pelo viés legalizado, que é o das drogas. A criação desta forma de comércio trouxe o tráfico instaurado violentamente dentro das comunidades aludindo a uma paz que reinaria se os membros viventes do local considerassem o traficante como o detentor do poder no morro, vendendo seus favores em troca do silêncio, da resignação e aceitação dos populares, sempre pela força. Essa formação, ainda em seu ápice, teve outro grupo contrário aos seus modelos, que passou a defender outro “ponto de vista”, conhecido por milícia.

A década de 70 foi marcante para o surgimento, ao menos no Rio de Janeiro (nossa base para os estudos a respeito), de um poder armado com o intuito de prestar segurança aos comerciantes locais. O pagamento de propina a policiais para que estes expulsassem o perigo que rondava a favela Rio das Pedras, na época, teve um desencadear numa frenética velocidade e o surgir de um novo agrupamento que inicia seu domínio a partir da legitimação de alguns moradores cansados dos assaltos constantes, do tráfico de drogas que passou a expulsar as famílias das ruas, e, da insuficiência do Estado em promover segurança.

Só que esse movimento proporcionou, a princípio de uma forma aceita pela população local, uma divisão muito concisa entre aqueles que fariam essa defesa a parte do poder do Estado e os que ainda não aderiram a ela: os policiais fardados e os agrupamentos conhecidos como parapoliciais ou milicianos.

Com o decorrer dos tempos, essas milícias cresceram em efetivo e passaram a fazer parte da vida das favelas e regiões de risco da cidade. O problema maior se deu quando esse grupo entendeu que a inclusão no interior desse outro mundo aquém daquilo que se habilitaram a realizar ao vestir a farda da polícia militar, era mais lucrativo e justificante, era uma segunda vida, paralela aquela que a farda exigia. Em um primeiro argumento, não é legalmente permitido atividades de segurança publica que excedam o serviço policial, ou, receber propina “por fora” para qualquer tipo de atividade relacionada ao fim da atividade policial em si. Em segundo olhar, o motivador lucro tomou as proporções devidas, num sistema capitalista, ofuscando as milícias que passaram então a travar suas batalhas em prol desse instigante motivador.

Dessa forma, cobrar seus serviços passou a ser o âmbito das milícias dentro das comunidades, que, pagavam sem pestanejar os préstimos realizados em prol de sua segurança. Outros meios enfim, vieram para efetivar mais lucro, como a venda de TV a cabo pirata, internet, comércio de botijão de gás, entre outros. Cobrar R$ 46 Reais por um bujão de gás enquanto o preço em outro ponto convencional era de R$ 25 Reais fazia parte dos serviços milicianos. Dessa forma, com esse lucro, afinal, pode-se armar um exército para combater o famigerado tráfico de drogas e seus “maltrapilhos”. Só que esse não era o intuito principal, o real e necessário lucro é quem deveria ser alcançado, e se para isso fosse preciso entrar em acordos com traficantes rivais, esse contrato entre cavaleiros era selado.

Quando esse destacamento se iniciou um grande alarido com ele foi destacado, uma vez que passariam os donos do comércio a pagar para que os policiais atentassem com maior cuidado para aquela região, era que um número considerável de forças policiais seria necessário para conseguir o inicial intuito, que eram as rondas ostensivas e patrulhamento de prevenção nessas áreas. Grupos de milicianos então foram se formando e as comunidades passaram a marcar suas casas, ruas e lugares de destaque com a famosa frase: Vizinhança Comunitária ou Autodefesas Comunitárias.

Dessa forma, grupos de defesas que inicialmente deveriam fazer a proteção do local passaram a vigorar como controladores das comunidades, e devido a grande repercussão de seus lucros, passaram a se formar outros grupos de milícia. Cada qual teria seu quinhão, e dessa forma, a sua marca. Alguns agrupamentos destacavam aos moradores a sua marca, que ficava desenhado em frente ás portas dos casebres, para que assim, se identificasse o grupo que por ali tinha o poder.

Mas a milícia poderia ir ainda mais longe, quando o apoio a estas passou a ter voz pelos meios de comunicação e mesmo por figuras políticas, quando em uma declaração do então prefeito César Maia trouxe sua afirmação de que seriam as milícias “um mal menor que o tráfico.” Com todo esse suporte, o envolvimento com a politica seria imprescindível para que pudessem os grupos paraestatais a efetivar a legitimação de sua presença, que já era maciça e ilegal, pelas lentes do Estado. Essas lentes passariam a ser vistas com olhos mais receptivos a partir do momento em que líderes das milícias passassem a fazer parte do sistema político do Estado, controlando e divulgando informações que viriam de encontro aos seus motivos e seus objetivos.

Obrigados a isso ou não, os moradores dos locais passaram então a votar em seus “líderes comunitários” que começaram a deter um maior poder em suas mãos, agora um poder institucionalizado. Enquanto isso, a violência, a truculência e a exploração no interior das comunidades continuavam e nada havia que pudesse conter esse crescimento.

Lutando em outro front, haviam os traficantes, que pelejavam para reaver sua posição nas favelas e assim, o seu mercado, que também objetivava o lucro. Dessa maneira, a guerra entre a milícia e o tráfico passou a ser intensa, enquanto alguns setores afirmavam seu apoio à milícia, a violência crescente dentro das favelas deixava marcas que não poderiam ser sopesadas. Violência contra policiais das corporações, assassinatos de policiais que faziam parte da milícia, por discórdia na divisão dos louros, iniciaram a derrocada da milícia, que não poderia ser assegurada nem por seus políticos escolhidos dentro do sistema. O sistema havia criado a institucionalização de uma violência que se generalizou ao ponto de agir inclusive contra ele.

Essa impetuosidade fez com que o Estado agisse, quando por um lado traficantes queimavam ônibus e atacavam o cidadão para chamar atenção fora dos morros, por outro, a milícia controlava a vida e alma dos moradores, inclusive lutando entre si. Dois grandes grupos milicianos se fizeram presentes e entre esses grupos a guerra era conflito iminente. Mortes de policiais dentro das favelas por policiais não poderiam ser toleradas.

Com toda violência, as Unidades de policia Pacificadoras da Policia Militar foram instauradas para minimizar e talvez, encerrar atividades milicianas e de traficantes nos locais. CPIs instauradas, políticos milicianos investigados, leis foram promulgadas, tal qual a Lei 12.720/2012, tipificando o crime de formação de quadrilha e milícia.

Contudo, o que se pode sopesar em uma compreensão valorativa da situação é que as comunidades carentes, bestializadas e esquecidas, são demasiadamente usadas por alguns para que se instale, longe dos olhos do Estado, corporações criminosas e células de atividades ilícitas, que tem por objetivo única e exclusivamente o lucro.

O tráfico é o exemplo mais destacado, quando a busca pelo mercado negro das drogas para o trabalho vem a ser a saída de muitos, que somente nesse local encontram alguma oportunidade. A milícia combate esse tráfico apenas por uma razão: controlar o morro para que possa assim, retirar o dinheiro em forma de cobrança por segurança, dos cidadãos, e isso objetivado sempre por maior lucro.

Leis, normas e decretos não irão controlar esses grupos, bem como, o aumento das penas para alguns crimes não diminuem a sua realização. Enquanto existam comunidades carentes e famílias esquecidas e ao mesmo tempo estereotipadas, sempre haverão os lobos que tentarão se aproveitar de suas fraquezas.

A busca desenfreada pelo lucro é o fator que objetiva as reações, os labores e as batalhas desses agrupamentos, que tem a vida ao redor como descartável e que pode ser avaliada por seus ganhos financeiros.

Esses estudos terminam com um pensamento que nos leva a crer que não estamos no caminho certo, considerando ou não as mazelas financeiras das vítimas em questão. De qualquer forma, a presa essencial dessa violência é sempre o morador das comunidades carentes, depois, em segundo lugar, os cidadãos ao redor e toda a sua estrutura, da qual o Estado também faz parte. No entanto, parece que enquanto essa violência permaneça dentro dos morros e não desça até os playgrounds alheios da vida consumista ao entorno, não há problemas, não existem mazelas.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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