O princípio da insignificância no contrabando e no descaminho
O princípio da insignificância, quando presente, retira a tipicidade material da conduta. Ou seja: não basta que uma esta seja formalmente típica. É necessário, também, que seja materialmente típica. No entanto, antes de adentrar à análise de tão importante princípio, no âmbito de dois delitos aduaneiros – contrabando e descaminho – é preciso tecer alguns breves comentários sobre o tão caro princípio da legalidade.
Quando se fala em Direito Penal, certo é que o princípio da legalidade deve ser o norte de toda e qualquer análise quanto a um crime estar ou não evidenciado, considerando sua descrição legal. Caso não haja a perfeita subsunção dos fatos aos termos da lei, não se pode falar em infração penal. A legalidade, portanto, como um dos ápices do garantismo, é, de fato, garantia a todos nós, na medida em que temos (ou DEVERÍAMOS ter) a segurança de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Assim, por mais que uma conduta possa ser considerada “imoral” por muitos, se ela não for descrita como crime, não se poderá alcançar aquele indivíduo via esfera do Direito Penal (que, aliás, é, ou DEVERIA ser, a ultima ratio). Nunca é demais lembrar, já que vivemos num país com uma forte cultura de “encarceramento”, de buscar a Delegacia de Polícia para ilícitos apenas civis, de tentar bater nas portas da Justiça Penal para buscar resolver o que ali não deveria estar sendo solucionado.
Assim, a primeira grande análise de uma conduta, para amoldá-la ou não como infração penal, deve ser, justamente, seu PERFEITO encaixe, a total subsunção a uma lei penal prévia, escrita, estrita e certa. Não se pune em Direito Penal por costumes, é vedado o uso da analogia in malan partem, não se pode ter tipos penais vagos, no sentido de gerar dúvidas do que é ou não a infração penal ali descrita.
É preciso frisar, ainda, que embora uma lei penal possa estar vigente em nosso ordenamento jurídico, o jurista não pode se isentar da tarefa de analisar sua constitucionalidade e, quando for o caso, efetivamente aventar a inconstitucionalidade no processo. Há muita lei penal em vigor que, de fato, viola os princípios mais básicos em Direito Penal. Há leis incompreensíveis, outras desproporcionais, outras que sequer deveriam estar no bojo jurídico penal.
A perfeita subsunção dos fatos à descrição legal é um passo necessário, porém não suficiente. Quando o encaixe dos fatos à lei ocorre perfeitamente, temos a denominada tipicidade formal. No entanto, para preencher o elemento da tipicidade no segundo aspecto, é preciso que a conduta seja, também, materialmente típica.
O princípio da insignificância tem o condão, quando presente, de retirar a tipicidade material de uma conduta, a qual será considerada, portanto, atípica. O fato não será crime, pois não há o necessário grau de lesão ao bem jurídico tutelado. Tal princípio possui alguns requisitos para sua configuração. Conforme entendimento dos Tribunais superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), para a incidência do princípio da insignificância, a conduta do agente deve guardar mínima ofensividade, não pode haver periculosidade social da ação, o grau de reprovabilidade do comportamento deve ser reduzidíssimo, a lesão jurídica provocada deve ser inexpressiva.
A questão é: como ocorre a aplicação desse princípio nos delitos de contrabando e descaminho? Eis mais um tema a ser enfrentado no âmbito do Direito Penal Aduaneiro.
Para relembrar, aludidos crimes foram dispostos separadamente (antes eram no mesmo artigo), no Código Penal, após o advento da Lei nº 13.008/2014. O contrabando, descrito no artigo 334-A, é: “importar ou exportar mercadoria proibida”, com pena cominada de reclusão, de 2 a 5 anos. Há, ainda, as condutas de seus parágrafos. O descaminho, por sua vez, disposto no artigo 334, é o “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”, com pena cominada de reclusão, de 1 a 4 anos. Observe-se, também, as condutas de seus parágrafos.
A jurisprudência tem diferenciado a aplicação do princípio da insignificância, tendendo a não considerar sua configuração, quando for delito de contrabando, e aplicá-lo ao crime de descaminho, caso o valor dos tributos elididos não ultrapasse R$ 10.000,00 (dez mil reais).
É possível refletir acerca do assunto a partir de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, citadas abaixo. Vejamos:
No crime de contrabando, é imperioso afastar o princípio da insignificância, na medida em que o bem jurídico tutelado não tem caráter exclusivamente patrimonial, pois envolve a vontade estatal de controlar a entrada de determinado produto em prol da segurança e da saúde pública.” (STJ. AgRg no REsp 1479836/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2016, DJe 24/08/2016).
Este Superior Tribunal de Justiça tem o entendimento consolidado no sentido de ser inaplicável o princípio da insignificância ao crime de contrabando, haja vista que, por ser um delito pluriofensivo, o bem jurídico tutelado vai além do mero valor pecuniário do imposto elidido, alcançando também o interesse estatal de impedir a entrada e a comercialização de produtos proibidos em território nacional. (AgRg no REsp 1587207/PR, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 28/06/2016, DJe 03/08/2016)
A Terceira Seção desta eg. Corte Superior firmou orientação no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.112.748/TO, de minha relatoria, que, no crime de descaminho, o princípio da insignificância somente afasta a tipicidade da conduta se o valor dos tributos elididos não ultrapassar a quantia de dez mil reais, estabelecida no art. 20 da Lei n. 10.522/02. II – A publicação da Portaria MF 75/2012, por não possuir força legal, não tem o condão de modificar o patamar para aplicação do princípio da insignificância. (REsp 1.393.317/PR, Terceira Seção, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe de 2/12/2014). (STJ. AgRg no REsp 1394011/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2015, DJe 13/05/2015)
Quando se fala em Direito Aduaneiro, há primazia do caráter regulatório em detrimento do arrecadatório. No entanto, mesmo diante dos posicionamentos atuais sobre o tema, precisamos refletir. E, mais: quanto ao contrabando, especialmente, é preciso questionar a proporcionalidade no motivo de proibição de determinada mercadoria, sua atualidade, seu verdadeiro embasamento. O raciocínio final, dependendo da conclusão acerca do real fundamento de uma proibição, pode ser diferente.
O importante é refletirmos sobre o assunto. E isso não é, certamente, insignificante.