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O problema da crença nas estatísticas em matéria criminal


Por Lenio Luiz Streck


Uma estória antiga dá conta de que um rei fez um torneio de caça ao pato. Um caçador (brasileiro) deu dois tiros, errando à direita e à esquerda do bicho. Como ninguém havia acertado o alvo, o brasileiro reivindicou o prêmio, com o seguinte raciocínio: dei um tiro e errei um metro à esquerda do pato; depois, dei outro, errando um metro à direita. Na média, acertei o pato. E citou, a seu favor, um enunciado jurídico feito em workshop que dava sustentação à tese. O rei lhe deu razão, mas com uma condição: que o mesmo cálculo estatístico valesse contra ele. Dito isto, colocou o brasileiro com um pé nas brasas e outro pé no gelo. O brasileiro berrava contra a injustiça, ao que o rei lhe respondera: na média, a sua temperatura é ótima! Bingo!

Por que estou contando isso? Para falar do furor que causou o relatório da pesquisa O Supremo e o Ministério Público (baseada em cálculos estatísticos e pesquisa quantitativa), publicada pelo jornalista Elio Gaspari no jornal Folha de São Paulo (veja aqui).

A parte da pesquisa que causou maior impacto foi a seguinte frase: “Nos processos da operação “lava jato”, que tanta atenção têm recebido recentemente, o Supremo dificilmente reverteria uma decisão desfavorável aos réus emitida pelo TRF-4. Em 2013, as chances de isso ocorrer eram de 1%” (veja a pesquisa completa).

Pânico nas rodas jurídicas de Pindorama. Com profecias sobre o passado, a pesquisa vaticina(va) o futuro. Pior: um futuro tenebroso para os acusados na operação “lava jato”. Tenho desconfianças com pesquisas e com estatísticas. Lembro de uma famosa pesquisa sobre o modo como decidem os juízes em Israel. Pelos números, tinha-se que, logo depois do café da manhã, os magistrados de lá eram mais benevolentes para com os acusados; já perto do meio-dia, com fome, eram mais duros. Bingo. O que isso prova? Nada. Ou melhor, prova, sim. Prova que Israel deve instituir um auxílio-lanche para o meio da manhã. Durante o mensalão, também houve quem dissesse que até o almoço dos ministros do STF influenciaria na decisão. E eu retrucava: se o Direito depende desse tipo de número e argumento, então todos esta(re)mos lascados. E vamos deixar a ciência para os coaching e estatísticos.

Sigo para falar da extensa pesquisa feita pela FGV. Não me entrego na primeira. Fui atrás dos números e logo constatei o motivo de minha estranheza. Primeiro, parece ter havido uma extrapolação dos limites do método quantitativo; segundo, a pesquisa não deixa clara a base de cálculo. Há uma zona cinzenta considerável nos números. Diz a pesquisa, verbis: “Uma vez analisados os percentuais de taxa de sucesso do MPF, atuando como parte ativa, analisamos sua taxa de derrota quando está na posição de recorrido no Supremo. No início dos anos 2000, a taxa de derrota de todas as procuradorias regionais federais sofreu uma redução significativa, mantendo-se, em geral, em 30%. É importante ressaltar que, a partir de 2007, essa taxa manteve-se na faixa dos 10% e quase sempre abaixo da média do Tribunal. Em 2013 a média do Supremo (sic) era de 5,7%, enquanto que aquelas das procuradorias da 2ª e 5ª Regiões eram, respectivamente, 2 e 3%. Isso vale inclusive para o TRF-4. Esse índice permite inferir, por exemplo, as chances de reversão de uma derrota do réu em apelação a esse tribunal. Ou seja, nos processos da operação “lava jato”, que tanta atenção têm recebido recentemente, o Supremo dificilmente reverteria uma decisão desfavorável aos réus emitida pelo TRF-4. Em 2013, as chances de isso acontecer eram de 1%” (p. 14 e, igualmente, p. 55) (grifei).

Só que isso é dito a partir de uma pesquisa que se autodenomina de “quantitativa” (pág. 9). Por isso, é importante estar atento a este critério, verbis:

“O desempenho do MP pode ser mais bem avaliado em razão do resultado das decisões finais nos processos em que é parte. Nesse caso, o levantamento é feito excluindo decisões interlocutórias e liminares e computando decisões que encerram um processo — favoráveis ou desfavoráveis. São consideradas favoráveis decisões de procedência parcial ou total, enquanto que todas as demais — como improcedência ou negativa de admissão — são consideradas desfavoráveis. Não fazem parte da contagem decisões sem manifestação do Supremo sobre admissão ou mérito do caso, como quando o processo é considerado prejudicado ou o tribunal apenas homologa acordo entre as partes. Também não computamos andamentos de decisão nos quais o teor desta é ambíguo” (p. 50) (grifei).

Pergunto eu: Isso significa que, se o MP conseguir ganhar a impugnação das custas, ele sai vitorioso? O que é uma vitória? E o MP vence e perde? Se o MP requer a absolvição (ou recorre a favor do acusado) isso é considerado vitória ou derrota? No final, mostro isso a partir de minha própria atuação.

A pesquisa não deixa claro o que significam esses dados. Embora se autoconsidere “quantitativa”, presume que “a taxa de reversão de decisões envolvendo o MPF” (que costumava ser extremamente alta no começo dos anos 1990) é sinônimo de “taxa de sucesso” do MP. Em seguida, a pesquisa diz que observará “os dados referentes à porcentagem de decisões favoráveis em processos nos quais o MP federal figura na parte ativa”. Pergunto: nessa análise, se a parte contrária ao MP reverter uma questão acessória do processo, a pesquisa também considerará uma derrota do MP (já que foi uma decisão parcialmente procedente a favor da parte recorrente!)? Mais uma vez, a pesquisa não deixa claro, mas me parece que os autores mudam a “polaridade” do critério. Neste momento, para que uma decisão seja considerada uma “derrota” do MP, o acórdão deverá ser considerado totalmente improcedente. Fica, pois, a dúvida também aqui.

Em busca da resposta, observo que o gráfico na página 54 diz respeito à “taxa de sucesso da parte que recorre ao STF”. Em princípio, qualquer decisão parcialmente procedente deveria representar uma vitória da parte contrária ao MP e, consequentemente, uma derrota do MP. É aqui que encontro o “tal 1%”, pois a taxa de sucesso da parte que recorreu em processos oriundos do TRF-4 está próxima do zero do eixo Y. Eis a origem do tal 1% estarrecedor. Bingo de novo!

Mas será que o critério foi mantido? Sinceramente, duvido. Do mesmo modo que esse critério “qualitativamente” frágil de agrupar decisões de procedência parcial (que pode envolver questões acessórias muitas vezes banais) puxou o índice de “vitória” (sic) dos MPs para cima, creio que o mesmo deveria ter ocorrido nos índices da vitória da parte contrária ao MP. Elementar, pois não?

Por isso, posso afirmar que a pesquisa vai além dos métodos quantitativos. O único caso concreto que cita é a “lava jato”. Aliás, a questão da “lava jato” cai de paraquedas. A pesquisa falha “qualitativamente” ao não separar decisões de procedência parcial banais com decisões que envolve liberdade (esse seria um critério mais interessante: reduzir pena, soltar etc.). Não separa questões ligadas à matéria individual e coletiva. E, por fim, se os autores inverteram o critério do sucesso/derrota, a pesquisa terá um enorme problema…

A pesquisa, em nenhum momento, oferece elementos para a afirmativa envolvendo o tal 1% de possibilidade de reversão de eventuais decisões do TRF-4 em relação ao STF. Mas há algo mais grave: existem questões constitucionais e questões infraconstitucionais. Onde entra o Superior Tribunal de Justiça nesse jogo? Como ficam os recursos que vão “primeiro” ao STJ? Como essa fração de 1% cai no colo dos acusados da “lava jato”? Eis o mistério. Profecias do passado tentando vaticinar o futuro, pintando-o (o futuro) com a pior das tintas, como uma espécie de tentativa de formação de juízos sintéticos a priori (se me entendem a ironia) tipo “réus-julgados-culpados-pelo-juiz-Moro-cuja-sentença-foi-confirmada-pelo-TRF4-não-devem-ter-sentenças-reformadas”. Mais do que uma pesquisa com conclusões perigosas, o risco é desta — a pesquisa — transformar-se em um importante componente de formação de uma imaginário anti-lavajato. De minha parte, por coerência, sempre acreditei que a presunção da inocência vale para todos. Eu disse “todos”.

Mais: números podem ser lidos de vários modos. Já demonstrei isso na ConJur (veja aqui) com uma pesquisa que dizia que o STF não era ativista. Com os mesmos números, demonstrei o contrário. Dependia do que a pesquisa tinha como conceito de “ativismo”. O mesmo se aplica à pesquisa sob comento. O que é “taxa de sucesso” do MP? Em sendo o STF o locus da pesquisa, deixa-se de lado toda a matéria infraconstitucional. Eu poderia pegar os números de concessões de habeas corpus no STF nos últimos dez anos e mostrar que há muito mais chance de um habeas ser concedido no STF do que em qualquer tribunal da federação, incluindo os tribunais regionais. Estatísticas são interessantes e por vezes bizarras: eu ingresso com habeas corpus e “perco” no STF. Só que ele é concedido de ofício. Perdi ou ganhei? Cartas para a redação.

O que é científico nesse campo? Particularmente, gostaria de saber como entram na pesquisa, por exemplo, as centenas de processos que eu, nos últimos anos de MP do Rio Grande do Sul, pedi a absolvição no segundo grau e o Tribunal de Justiça acatou.[1] Deles, por incrível que pareça, o MP recorreu. Sim, ele recorreu contra o procurador Lenio. MP x MP. E “ganhou” no STJ ou STF. Afinal, o que vale? O MP de segundo grau contra ele mesmo? Só com relação à reincidência e à presença obrigatória do advogado no interrogatório foram mais de mil casos. Em relação à insignificância, centenas. Isso só do MP-RS. Eu sei do que estou falando. Como eles seriam computados? A favor ou contra? Números, números. Se eles não falam por si, podemos dizer qualquer coisa sobre eles?

Mais ainda: de novo, pergunto — o que significa “sucesso” do MP? A pesquisa esqueceu que o STF só condena/absolve (examina prova) em casos de competência originária ou recursal ordinária? Logo, como examinar a tal taxa de sucesso?

As conclusões dos respeitáveis pesquisadores da FGV, especialmente no que se refere à probabilidade de modificação pelo STF de decisões tomadas em outras instâncias nos processos envolvendo a operação “lava jato”, padece de equívocos metodológicos graves. Na verdade, quando o STF funciona como instância, efetivamente? Mais: A própria adoção de um método quantitativo “puro” é questionável, principalmente quando se pretende, a partir desses números, julgar o mérito de uma instituição complexa como o MP. A pesquisa jurídica, mais ainda, exige crítica.

Dados são importantes, mas entre os números e o sentido que estes assumem na análise encontra-se uma dimensão que, em termos metodológicos, poderíamos chamar de “qualitativa”. Nas palavras de Bourdieu, teria faltado “vigilância espistemológica”. Ademais, mesmo desconsiderando uma crítica externa à opção metodológica adotada na pesquisa, a própria aplicação do método quantitativo merece críticas. Entre a hipótese levantada — e aqui já não seria possível afastar a condição hermenêutica do pesquisador — e as conclusões de uma pesquisa quantitativa não é possível ignorar determinadas variáveis.

Para a análise das “taxas de sucesso” do MP, a pesquisa leva em conta apenas as variáveis relacionadas às subdivisões organizacionais do Ministério Público (estaduais, federais e, dentre estes, suas seccionais estaduais). Um cenário quantitativo exigiria a abordagem de variáveis que envolvessem o mérito das questões que foram julgadas pelo STF. Sim: ações penais tem especificidades. Concretude. Não dá para analisar milhares de casos via-ementa, como se fossem “conceitos sem coisas”.

Em meio aos extratos de julgamento, há questões de natureza ambiental, penal, administrativa, etc., como a própria pesquisa revela. No entanto, não há o cruzamento destes dados a fim de que se avalie se há ou não diferenças no êxito das demandas oriundas do MP.  De novo, o que é êxito? Além disso, a pesquisa considera que o “sucesso” do MP pode ser medido por uma taxa que considera como favoráveis as decisões de procedência parcial ou total, enquanto que todas as demais — como improcedência ou negativa de admissão — são consideradas desfavoráveis. Como assim? Vale para uma coisa e não vale para outra? Mesmo que ignoremos a relação “qualitativa” entre o “sucesso” e o seu “êxito processual”, seria fundamental avaliar e separar as decisões parcialmente procedentes que dizem respeito a questões meramente acessórias.

Já quanto a taxa de “derrota”, utilizada para a previsão sobre a probabilidade de reversão no STF de decisões oriundas da “lava jato”, sequer sabemos como a “taxa de derrota” do MP foi calculada, já que a descrição metodológica não oferece esse recurso. Uma derrota do MP só seria considerada se a decisão fosse totalmente procedente para a parte contrária? Qual seria a “taxa de sucesso” dos advogados dos réus se nós a calculássemos do mesmo modo que a “taxa de sucesso” do MP?

Sendo mais claro: Como, portanto, concluir, sem avaliar o êxito por matéria e sem distinguir a natureza dos provimentos parciais, que o “Supremo dificilmente reverteria uma decisão desfavorável aos réus emitida pelo TRF-4” e que, “em 2013, as chances de isso acontecer eram de 1%”? São conclusões que não cabem no método quantitativo, especialmente se considerarmos o modo como a pesquisa dele se valeu.

De novo: o que é, para o MP, ganhar ou perder? Atuei 28 anos no MP como um magistrado. De forma imparcial. Tanto é que o TJ-RS dizia: se até o procurador Streck está requerendo a condenação, é porque o réu não se ajuda. Ganhar, perder? Em que instância? STF analisa prova? Repito: onde ficou o STJ? Outro problema: a análise desconsiderou a atuação do MP como fiscal da lei. A pesquisa limitou-se ao maniqueísta modelo acusação versus defesa. Isso não é apequenar a instituição?

Intrigante é que a longa pesquisa apresenta uma “bomba” que não se sabe de onde saiu a pólvora: de onde tiraram a “previsão” de que a possibilidade dos réus da “lava jato” não passa de 1% de reversão no STF? Penso que o zeloso Elio Gaspari também deveria ler de novo a pesquisa. E recomentar/reescrever a matéria. Sob pena de passarmos a acreditar que o rei da anedota tinha razão: já que o sujeito da estória “matou” o pato estatisticamente, ele bem mereceu, como prêmio, uma temperatura média para os seus pés.

Há que se cuidar, porque, por vezes, dois tiros no pato podem ser dois tiros no pé… Da história do processo penal. Não quero ser um implicante com esse tipo de pesquisa. O que me intrigou foi a conclusão a que chegaram os pesquisadores sobre o tal percentual (1%). E isso me pareceu uma ideologização dos números. Com endereço certo. Ou estou enganado?


NOTAS

[1] Parcela do MP deveria reclamar da visão que a pesquisa tem do MP. Parece ser a velha visão do “promotor público”. Só “ganha” se consegue a condenação. Aliás, o MP deveria se lastrear no MP alemão. Lá, a lei que o autoriza a investigar. Também o obriga a investigar a favor da defesa. Preciso dizer mais? Bingo!

_Colunistas-Lenio (1)

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