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O procedimento do júri e o “princípio” in dubio pro societate

O procedimento do júri e o “princípio” in dubio pro societate

No plenário do júri é onde há o enfrentamento entre a acusação e a defesa, por meio de debates orais, perante sete jurados, buscando a condenação ou absolvição de um acusado por crime praticado contra a vida humana ou com esse conexo.

Essa parte dos debates é muito conhecida e desperta a admiração de todos, já que exposta em filmes e documentários. Entretanto, antes da ocorrência do referido embate, há decisões importantes já tomadas, visto que essa é somente a segunda fase de um procedimento bifásico.

De imediato, importante mencionar que o rito/procedimento do júri está disciplinado entre os artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (CPP) e é instaurado quando ocorre um crime tentado ou consumado cujo dolo do agente é ceifar a vida humana. Significa dizer que, se o agente deseja matar a vítima, com o fim específico de tirar sua vida, seguiremos o procedimento especial do júri; entretanto, se o agente matar a vítima, não com a finalidade de lhe tirar a vida, mas para roubar algo dela, o dolo/fim específico do agente é o patrimônio, tratando-se, assim, de latrocínio, crime que não segue o rito especial do juri.

O procedimento do júri

Como mencionado, trata-se de procedimento composto de duas fases, sendo a primeira chamada de sumário de culpa e a segunda de juízo da causa. O tema principal deste apanhado de ideias consiste no final da primeira, mais no que se diz respeito à pronúncia ou impronúncia do acusado.

De maneira geral, a primeira fase é iniciada formalmente com o oferecimento da denúncia. Ou seja, após realizado o inquérito policial, o Ministério Público oferece a denúncia contra o acusado e o juiz a recebe, determinando a citação, para que responda a acusação que lhe é feita.

Após, o processo seguirá para a instrução, produzindo-se as provas requeridas, procedendo-se a oitiva de testemunhas e o interrogatório do réu. Encerrada a instrução e apresentadas as alegações finais, caberá ao magistrado proferir uma das decisões previstas a partir do artigo 413, do CPP.

O legislador foi criterioso e disciplinou várias hipóteses cabíveis, podendo o magistrado, em decisão devidamente fundamentada:

  • Pronunciar o acusado, submetendo-o ao plenário do júri, quando convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação;
  • Impronunciá-lo, quando não se convencer da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação;
  • Absolvê-lo sumariamente, quando estiver provada a inexistência do fato; ou provado não ser o acusado autor ou partícipe do fato; ou o fato não constituir infração penal; ou, ainda, estiver demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime;
  • Desclassificar o delito para outro tipo penal, quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no 1o do art. 74 do CPP e não for competente para o julgamento; ou seja, quando entender que o réu praticou crime diverso e não doloso contra a vida.

Todavia, mesmo contando com essas opções de julgamento, criou-se (ainda não se sabe por/para quê), um ´´princípio´´ especial, totalmente na contramão dos demais, o chamado in dubio pro societate.

Esse princípio diz, em síntese, que, havendo dúvida ao final da instrução, essa não deve mais ser convertida em favor do acusado (in dubio pro reo); pelo contrário, deve ser convertida em favor da sociedade (in dubio pro societate), encaminhando o acusado ao plenário do júri.

O que causa espanto? Os julgadores, já há muito, acolhem essa visão.

Nunca é demais lembrar que o julgamento pelo tribunal do júri é extremamente arriscado, visto que, dentre outras ressalvas, os jurados não precisam fundamentar suas decisões, podendo condenar ou absolver por qualquer motivo, inclusive, por razões meramente subjetivas, sua própria consciência/convicção. Ademais, há soberania dos vereditos, não podendo os Tribunais modificarem as decisões meritórias dos jurados.

Consoante expõe o Emitente professor Aury Lopes Jr:

Não se pode admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário.

Por isso, necessário muita cautela no procedimento em tela.

Ora, já não basta a força estatal de busca probante contra um mero indivíduo que é acusado de ter praticado um delito, agora também é retirado do jogo um princípio que dava sensação de maior paridade de armas; pois, se houvesse dúvidas, essas seriam solvidas em seu favor. Todavia, sendo admitido o contrário, aumenta-se ainda mais a desvantagem do cidadão para com o todo poderoso poder estatal. Se a acusação imputa um delito a alguém, cabe a ela sustentar suficientemente essa imputação.

Sem contar que, infelizmente, há casos em que o pedido de pronúncia à míngua de provas tem sido utilizado como estratégia processual, na medida em que, no plenário do júri, ante a insuficiência probatória para buscar a condenação do réu, pede-se a absolvição como forma de ganhar a confiança dos jurados para um futuro júri, sob a justificativa de que, quando é caso de absolvição, o próprio órgão acusador solicita que os jurados absolvam o réu. E o júri acredita, não obstante seja uma atuação estratégica da acusação com o único fim de ganhar confiança do jurado (leigo) para debates vindouros.

Nesse contexto, percebe-se que não havia, como ainda não há, qualquer necessidade de criação do novo e intitulado princípio, já que não há lacuna interpretativa na lei. Significa dizer que, não se convencendo da materialidade e indícios suficientes de autoria, deve o julgador impronunciar o réu. É esse sentido o ensinamento de Gustavo Badaró, ao mencionar que

se houver dúvida quanto à existência dos ‘indícios suficientes de autoria’, o juiz deve impronunciar o acusado, como consequência inafastável do in dubio pro reo.

Só é necessário princípio quando não há regra clara acerca do assunto. Havendo, como há, e procedendo o magistrado por razões subjetivas, está, em verdade, agindo com arbitrariedade. Como sustenta Alexandre Morais da Rosa,

É prática autoritária desprovida de sustentação democrática.

Na senda desses argumentos, recentemente, a Corte Constitucional Suprema, no ARE 1.067.392, firmou entendimento no sentido que o suposto princípio não encontra amparo constitucional ou legal.

Assim sendo, reforça-se, através da decisão, a luta da melhor doutrina para que o processo penal venha ser regido por garantias, não por presunções contrárias ao acusado, ainda mais quando se trata desse complexo ritual judiciário, conforme atesta Aury Lopes Jr.

Registre-se, por fim, que a única presunção admitida ao final da primeira fase, desse modo, é àquela que milite em favor do réu. Significa dizer que, havendo dúvida, deve ser em favor dele solvida, em estrita observância às regras legais e constitucionais.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo H. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2004.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2018.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.


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Jeferson Freitas Luz

Estudante de Direito da Faculdade Dom Alberto (RS)

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