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O Processo: entre Kafka e o Real

O Processo: entre Kafka e o Real 

Nota introdutória: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão. O texto da vez, formulado pelo colega Gustavo Queiroz, foi feito com base no artigo “O Processo – Entre Kafka e o Real”, de Fábio Beltrami e Edson Luís Kossmann – publicado nos anais do VI CIDIL. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)

O artigo a seguir analisado foi intitulado “O Processo – Entre Kafka e o Real”, escrito por Fábio Beltrami e Edson Luiz Kossmann a partir da obra ‘O Processo’ de Franz Kafka (1883-1924) e, sobretudo, sobre as leituras de François Ost em sua obra ‘Contar a Lei’, com recorte em seus escritos literários, no Direito e especificamente na Teoria Jurídica.

Com fundamento no movimento denominado “Direito e Literatura”, François Ost aponta, dentre as várias análises possíveis, três vias quanto às interfaces do jurídico com o literário, sendo o “Direito da Literatura”, o “Direito como Literatura” e o “Direito na Literatura”, optando sua análise pela última via, centrando a questão de modo como a Literatura enxerga as questões de justiça e do poder que emanam da ordem jurídica.

Sobre esse mesmo viés os autores optaram por integrar a obra de Kafka e Ost e para tanto dividiram suas análises em 4 pontos: 1) Sobre a Função Simbólica e a Triangulação Ética; 2) A Desregulação do Triangulo Ético e o Paradigma de O Processo; 3) O espaço da Justiça; e 4) Os Personagens e Seus Papéis.

Discorrendo sobre o primeiro ponto Ost assevera que a função simbólica é a possibilidade de significação do mundo a nossa volta e do nosso próprio “eu”, pronome balizador da intersubjetividade institucionalizada que possibilita ao homem, a partir da função simbólica, o acesso ao comum da humanidade, e da relação deste com as demais de mesmo tipo “tu” e “ele”, a essas correlações Ost chamou de “triangularização ética”.

Todas as relações partem primeiro o “eu”, já que é preciso se reconhecer, afirmar-se, ter consciência, liberdade, autonomia, autodeterminação, sua identidade antes de conseguir interagir plenamente com os demais. Com efeito o desenvolvimento do “eu” necessita da existência do outro, pois esse processo se dá por comparação e para isso são necessários pelo menos 2, dessa análise surge o “tu”, representando a alteridade. O “tu” pode ser o “tu-outro”, ou “tu-terceiro”, quando houver mais de 2, dessa segunda relação com o “tu” surge o “ele”. Das relações com o “eu” e “ele”, por ele poder ser uma pluralidade, surge a ideia de “todo”, e assim desenvolvem-se as ideias políticas, justiça, lei geral e abstrata, para todos os outros que para eles são “eu”.

No segundo ponto Ost, aplicando a função simbólica na obra de Kafka, passa a explicar porque ocorreu a desregulação ética e qual é o paradigma de O Processo. Por não conseguir identificar o outo, “tu” e “ele”, na figura da lei para todos, resta a Josef. K apenas o “eu”.

Josef. K é processado, sem saber do que é acusado, quem o acusa, quais as provas existentes etc, “Tiro essa conclusão do fato de ser acusado e não conseguir descobrir a mínima culpa da qual me pudessem acusar. […] por quem sou acusado? Que autoridade conduz o processo? Os senhores são funcionários? (Kafka, 2005, p. 17).

Não há como identificar o outro, saber se o “tu” é autoridade competente, se há legitimidade, impedimentos ou suspeições por exemplo, não há como saber se as pessoas que o abordam são serventuários da justiça, se a citação/intimação é verdadeira. Talvez em uma delegacia escura, após certo terror, pressão psicológica ou mesmo coação física, dissessem-lhe, confesse, já temos as provas, assim é melhor para você. Mas o que há para ser confessado se não existe uma acusação formal? O “tu” impede que o “eu” exista por completo por não haver outra figura para comparação.

O mesmo ocorre com o “ele”, pois não há como conferir se a lei que lhe é aplicada existe, na forma do “ele” para todos, ou unicamente para lhe acusar, isso é emblemático quando o autor passar a discorrer sobre a lenda “Diante da lei” em que um camponês, após esperar anos nas portas da lei sem inferir que ninguém mais se apresentava à frente da porta para tentar seu ingresso, pede ao porteiro o motivo que levava a ninguém mais se interessar em entrar na porta, ao que o porteiro responde que “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta estrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (Kafka, 2005, p. 215).

A lei não era para todos, era enigmática, que se experimenta antes de conhecer, não provinha do Estado, era unicamente para Josef. K, “ele” é deturpado para “eu”, como não conhecimento do “ele”, resta afirmar o “eu”, conforme pode ser extraído do seguinte trecho em que o protagonista alega sua inocência e é indagado como pode ser inocente se disse desconhecer a lei “[…] admite que não conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que é inocente” (Kafka, 2005, p.12). Josef. K declara-se inocente porque é única coisa que lhe resta, no desconhecimento da lei e dos fatos, é falar de si.

A deturpação final do “tu” encontra-se nas figuras corrompidas do advogado Huld e das perversidades de algumas personagens mulheres.

As personagens femininas possuem uma malícia, uma perversão, sexualidade, tentando mediar favores com Josef. K, como a esposa do Bedel, oficial de justiça do tribunal, que possui intimidade com o juiz e ao estudante de direito para garantir o emprego do marido e o direito de morar na sala de audiência quando ela não está sendo utilizada e se oferece a interceder por Josef. K porque ele possui olhos mais bonitos que os seus, são figuras quase surreais que perderam suas individualidades ao conviver com um mundo jurídico promiscuo.

Josef. K ao decidir dispensar seu advogado descobre que o simples fato de conseguir vê-lo é um ato burocrático, aprendendo nesse processo que ele humilha seus clientes, é sádico e gosta de constrange-los, como fez com o comerciante Block, que dilapidou quase todo o seu patrimônio e quase não trabalha mais, a não ser em razão de seu próprio processo, morando em cômodo da casa do advogado à espera de ser atendido por ele, o que pode acontecer a qualquer hora, inclusive no meio da noite, pois  atender um cliente seria uma honraria, um favor, uma tolerância a seus clientes por pura compaixão, sendo um absurdo Josef. K pretender sua demissão. O advogado que deveria dar acesso ao Direito, é uma figura opressora, um “tu” que deveria fazer a ligação ao “ele” é um “tu” que barra o “ele”.

Quanto ao quarto ponto, ao discorrer sobre O Espaço da Justiça, Ost assevera que estes são simbólicos, espaços privilegiados, centrais sagrados, distintos dos espaços cotidianos, nobres, para irradiar sobre os homens sua presença, mas que na obra de Kafka são retratados como marginais, periféricos, tanto geograficamente, por estarem distantes da região central, quando simbolicamente por estarem em todos os lugares a demonstra onipresença, ao existirem por exemplo nos sótãos de casas privadas, como a do Pintor de quadros Titirelli, que relata:”O meu ateliê também faz parte dos cartórios, mas o tribunal colocou-o à minha disposição” (Kafka, 2005, p. 153). Veja o espaço é do pintor, mas o tribunal permite que ele o use.

Assim um espaço onde se produz justiça que deveria ser ordenado e arquitetado para tornar justo e equidistante o julgamento é retratado como um caos, um amontoado de pessoas corruptas, que a todo tempo trocam favores, fazem negociatas escusas, o processo também seria um reflexo disso e vice versa, ao possuir um rito processual aleatório, confuso, labiríntico, retratando assim a completa inversão desses espaços institucionais ordenados que segundo Ost seriam “uma versão moderna da profanação do templo pelos mercadores” (Ost, 2004, p. 456).

A derradeira análise de Ost se refere aos papéis desempenhados pelos personagens trama em comento.

Na casa do advogado Hult, pessoa vil e inescrupulosa, é encontrado em um canto escuro o juiz chefe da secretaria do tribunal. Porque um juiz estaria na casa de um advogado que julga suas ações? Para consultar o advogado antes de decidir, para conseguir provas extra autos, para vender sentenças? A questão não é explicada deixando implícita certamente uma quebra do princípio da imparcialidade por um comportamento no mínimo inadequado e isso inclusive é usado pelo advogado para valorizar sua função como se nota pela passagem: “Apesar disso continuam sendo mais essenciais as relações pessoais do advogado: é nelas que repousa o principal valor da defesa. ” (Kafka, 2005, p. 112).

Para Beltrami e Kossmann cada personagem da trama possui um papel simbólico e enigmático, que vai além ou é justamente o contrário do que deveria ser em relação ao Direito e a Justiça. Cada um exerce o papel que melhor lhe convém dentro do sistema em que o processo (num duplo sentido) está inserido e deve se desenvolver.

O próprio protagonista Josef. K ao ser qualificado tem por indicação a profissão de pintor de parede, ao corrigir sua profissão, tem como resposta que isso não importa, pois, o importante é o prosseguimento do feito, aqui talvez uma crítica ao princípio da celeridade ou eficiência, mas também pode ter ocorrido nesse caso uma confusão pela falha em identificação da pessoa processada, o protagonista pode ter sido confundido com esse pintor de parede e respondido pela ação em seu lugar, como dito antes, um processo caótico.

A finalidade do processo não é produzir justiça, permitindo a defesa, mas sim extrair uma confissão que assim legitime o processo com uma condenação pressuposta, nesse sentido as passagens: “não se trata absolutamente de um processo perante um tribunal comum” e “não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão” (Kafka, 2005, p. 93 e 105).

O sistema existe sozinho e seus atores possuem papeis predefinidos de execução burocrática automática, perderam suas individualidades e apenas fazem parte do processo, consoante se denota: “O que está dizendo soa plausível – disse o espancador – mas não me deixo subornar. Fui empregado para espancar, por isso espanco”. (Kafka, 2005, p.84). Desse modo torna-se impossível outros resultados que não os conseguidos através de trocas de favores, relações pessoais privilegiadas e Josef. K ao não se sujeitar a isso é conduzido pelo processo, sendo inúteis suas iniciativas de resistência.

Ao final Josef. K tem sua individualidade e sua humanidade retirada, não lhe restando qualquer dignidade, seu “eu” é reduzido para o de “um cão”, antes de morrer ele se transforma em uma demonstração tão kafkaniana em um animal, como não podia uma pessoa morrer daquela maneira, tentando salvaguardar sua humanidade, Josef. K se recusa a morrem daquela maneira, ele precisa manter viva a esperança de uma possível dignidade a ser resgatada.


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Gustavo Queiroz Rodrigues

Professor. Especialista em Direito Penal e Criminologia.

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