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O Processo Penal Neoinquisitório Brasileiro 

Por Samuel Santana. Dentre as clássicas distinções entre sistemas processuais penais, é comum na doutrina majoritária, bem como na jurisprudência, entender que os sistemas acusatório e inquisitório tratam-se tão somente de “modelos puros” de sistemas processuais, abstrações, exemplos doutrinários para fins de estudos teóricos.

Processo Penal Neoinquisitório Brasileiro

Seria portanto o sistema inquisitório um modelo histórico de processo, enquanto que o acusatório seria um modelo norteador, ideal, ao que aponta o progresso dos atuais sistemas processuais, não obstante este modelo seja “mais histórico” (é anterior e existiu por mais séculos) que o primeiro, pairando a indagação se esse fato é ignorado pelos que sustentam essa assunção ou se deliberadamente cegam-se a ele.

Consequentemente chegam ao ponto de afirmar que atualmente só há sistemas processuais mistos e que isso é suficiente, nada mais deve ser esperado, o inquisitivo indica o modelo do qual o processo deve afastar-se enquanto se aproxima do acusatório, contudo sempre estará no caminho entre um e outro.

Mais errado não poderia estar, com a máxima vênia, os locutores dessa ideia.

Considere que todos os sistemas processuais penais atuais são mistos, meramente; o que isso comportaria dizer? que todos os sistemas processuais penais contêm elementos do sistema inquisitório e elementos do sistema acusatório. Se assim o for, se a ciência jurídico-penal se ativer a esse reducionismo, pode-se olhar até mesmo aos exemplos históricos de ambos os modelos e encontrar elementos de sua contraparte. Por conseguinte, seria possível apontar no sistema acusatório da alta idade média elementos inquisitivos, como a inquirição de testemunhas ex officio pelo julgador, a busca pela verdade real, entre outros exemplos. Bem como o processo não iniciado de ofício, quando se tratava de delito fora de flagrância, onde a parte ofendida ficava com a carga acusatória, seria um dos exemplos de elementos do sistema acusatório em plena era de ouro do sistema processual inquisitório. Com efeito, até mesmo os modelos históricos de sistemas processuais penais seriam modelos mistos, restando apenas uma alusão teórica aos modelos puros.

Problematicamente, assumir que só há modelos mistos, conforme as lições de Aury Lopes Jr. (2020), não é dizer nada sobre os mesmos, visto que mesmo os exemplos históricos de modelos puros caem no critério de definição de um modelo misto, lançando assim o esvaziamento do conceito de modelo puro, pois não nenhuma realidade fática a que ele possa subsumir, e ainda a generalização do conceito de modelo misto, vez que todos os modelos são mistos, tornando então redundante falar em modelos mistos, pois apenas falar em modelos já seria o suficiente, vez que todos são mistos. Por isso deve-se concordar com Aury Lopes Jr. ao dizer que não está se dizendo nada quando dizem que todos os modelos processuais penais são mistos.

Destarte, tal doutrina é contestada, pois no pleno vigor da constituição cidadã, que consagra no seu artigo 129 a instituição do Ministério Público como órgão “extrapoder” com a função privativa de promotor da ação penal pública, não há espaço para disfarces, deve ser claramente apontada a natureza inquisitorial do sistema processual penal brasileiro, e o pior, contrariando o distinção juiz-acusação que sua Lei Maior apregoa.

Mesmo após 88 os dispositivos claramente inquisitórios do Código de Processo Penal continuaram a vigorar, os poderes legislativo e judiciário recusaram-se a esvaziá-los de eficácia, mesmo contrariando aquela Carta, portanto passou a vigorar no Brasil um sistema acusatório formal, que não é mais que uma nomenclatura para um processo penal inquisitivo velado, continua então valendo o sistema inquisitório, ou neoinquisitório, como diria Aury Lopes Jr. (2020), para se distinguir do sistema histórico, este que não precisou se esconder em disfarces.

O que há de novo nesse sistema é o fato do inquisidor ter ganho um órgão inteiro para lhe assistir na função de acusador, o Ministério Público, que fará todo o trabalho de promover a ação penal pública durante o curso desta, todavia ele não perde seus poderes, apenas o delega, podendo a qualquer momento determinar a produção de provas ou a realização de diligências (artigo 156, do CPP), e ainda inquirir testemunhas sempre que julgar que não foi esclarecido algo (é como se pratica a inteligência do parágrafo único do art. 212 do CPP), ou mesmo condenar o réu cuja a absolvição foi pedida por aquele órgão (art. 385, CPP), o que destaca a função meramente auxiliadora dele. Ainda antes também há a polícia, que assiste o inquisidor já na investigação preliminar, a qual poderá realizar da mesma maneira diligências e até a produção antecipada de provas a requerimento do inquisidor(por força dos dispositivos supra mencionados).

Ainda outras medidas judiciais que continuam sendo admitidas no Processo Penal Brasileiro, que mais o assemelham ao da Rússia Soviética que a de um Estado de Direito, evidenciam o caráter Neoinquisitório deste Sistema Processual Penal, cite-se apenas alguns: (1)o inquérito iniciado ex officio pelos tribunais, (2)as prisões decretadas de igual modo, (3)os conluios dos inquisidores Brasil afora com os membros do Ministério Público, que mesmo evidentes, levam anos para serem reconhecidos como exceções de suspeição, não raramente o réu já tenha começado a cumprir pena nesse transcurso de tempo, (4)a prisão-pena iniciada sem coisa julgada, o que felizmente não ocorre de pouco tempo para cá devido a um entendimento jurisprudencial, o que todavia sabe-se que pode mudar a qualquer hora, entre outras práticas da conduta inquisitiva brasileira.

Quando finalmente o legislador consagra expressamente o sistema acusatório, com a lei 13.964/2019, que o fez no artigo 3-A do CPP, o que revogaria tacitamente diversos artigos de caráter neoinquisitório, o tribunal constitucional, temendo perder seus poderes de inquisidor, em medida liminar nas ADI’s n. 6.298, 6.300 e 6.305, mediante decisão do ministro FUX, resolveu suspender a eficácia do dispositivo, já suspenso há mais de um ano, a contragosto da mens legislatoris, daqueles que desejam um Processo Penal Acusatório, não misto e jamais inquisitivo, com o respeito às garantias mínimas; e para a imensa satisfação daqueles que detém o poder inquisitivo e almejam a perpetuação do sistema neoinquisitório brasileiro.

Processo Penal Neoinquisitório Brasileiro

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Pedro Ganem

Redator do Canal Ciências Criminais

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