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O quanto ainda somos influenciados por Lombroso, Ferri e Garófalo?

O quanto ainda somos influenciados por Lombroso, Ferri e Garófalo?

É certo que para ZAFFARONI (2012) a Criminologia não nasce apenas quando lhe é outorgada a pecha da cientificidade, mas muito antes disso, já na Inquisição, com os demonólogos mais precisamente.

No entanto, os manuais dão conta de que a Criminologia se torna ciência, pelo método então adotado, do empirismo, com o positivismo criminológico e a chamada Escola Positiva Italiana, a qual tinha por expoentes mais conhecidos: Lombroso, Ferri e Garófalo.

De acordo com ANITUA (2008), o positivismo criminológico estaria marcado pela cientificidade e pelo organicismo (a ideia de que a sociedade era um todo orgânico).

É que à época do seu surgimento, quando da instauração de uma nova ordem social burguesa industrial, a teoria do contrato social saudada pelos clássicos, aliada a função preventiva da pena, já não era mais suficiente à legitimação dessa nova ordem, por isso o desenvolvimento da ideia de que o fundamento do castigo estaria na conservação social e não na mera utilidade, antepondo os direitos dos ‘honrados’ aos direitos dos ‘delinquentes’ (GOMES, 2006).

Desde então laboramos com a máxima do cidadão de bem versus bandido, dicotomizando a pessoa humana, como se isso fosse possível! E vejam que estamos falando do século XIX!

Daí também porque a Escola Positiva Italiana sobrepunha a rigorosa defesa da sociedade frente aos direitos dos indivíduos, diagnosticando o mal do delito com simples fatores patológicos e individuais, os quais exculpam de antemão a sociedade e lançam a ideia de ‘homem delinquente’, um ente diferenciado dos seres humanos normais, não só porque padece de uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais, tal como acentuava Lombroso; mas também porque esse mesmo delinquente, segundo Ferri, seria um agente infeccioso do corpo social do qual era preciso ser separado, com o que convertia os juízes em leucócitos sociais (ZAFFARONI, 2013).

Não sem razão Garófalo irá defender a pena de morte em determinados casos, pontuando que do mesmo modo que a natureza elimina a espécie (influência da seleção natural) que não se adapta ao meio, o Estado deveria eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade e às exigências de convivência.

Sabe-se, também, que muito antes disso, mais precisamente quando o Estado toma para si o monopólio da violência e o exercício do Poder Punitivo, retirando das mãos do particular a vingança privada; para além do confisco da vítima, tinha-se por propósito a racionalização da lei de Talião: o olho por olho, dente por dente; com o intuito de evitar-se que o mais forte sempre prevalecesse em detrimento do menos forte, ou do mais fraco, o que seria motivo de injustiça.

Ocorre que ainda padecemos dessas influências, mais do que se possa imaginar, talvez por isso não seja sem razão a máxima de Zaffaroni no sentido de que a Criminologia mais se assemelha a um parque jurássico, pois no seu interior convivem as mais diversas teorias e também marcos teóricos, muitos transvestidos apenas pelo prefixo de ‘neo’, que significa novo, um novo velho, diríamos.

A semana passada nos deu mais um exemplo de que para alguns a defesa da ‘sociedade’ se sobrepõe ao direito do indivíduo, esse visto como um agente infeccioso do corpo social, o qual precisa ser extirpado desse meio, até sendo justificável nesse contexto a sua própria morte, que se não é realizada pelo Estado (ainda que não formalmente), conforme defendia Garófalo, deve, então, se dar pela sua própria comunidade, ou melhor, pelos seus próprios pares.

Tal é o que se deu no Maranhão, quando Cleidenilson Pereira da Silva foi morto, em evidente linchamento, por tentar roubar um bar, na companhia de um adolescente, o qual não morreu também, pois segundo noticiaram os jornais, após as primeiras agressões de populares, teria se fingido de morto para sobreviver.

Para além da barbárie que esses episódios encerram, os quais se tornam cada vez mais corriqueiros em solo brasileiro e nos colocam mais próximos do medievo do que da evolução social e civilizatória; o fato é que também deveriam eles servir a nos fazer refletir sobre a existência do direito penal em si.

Como assim? Ora, já disse acima, em outras palavras, que o direito penal surge com o monopólio por parte do Estado da violência e do Poder Punitivo e com o intuito de igualar o forte ao fraco, vedando e evitando a vingança privada.

Ocorre que a realidade posta, conforme referido acima também, nos dá prova é da influência do passado, não por menos suscitamos o cotejo com a Escola Positiva Italiana, abrindo, assim, espaço ao discurso abolicionista penal. O que até poderia ser considerado um contrassenso, mas não o é.

Explico. De acordo com SHECAIRA (2013), para os abolicionistas o delito é uma realidade construída, já que resulta de uma decisão humana, sendo a lei quem por último irá ditar o que é crime e quem é seu criminoso. Assim, fica fácil abolir o crime, pois já vivemos em uma sociedade sem direito penal, segundo eles, embora sequer percebamos isso.

Vejamos alguns dos seus porquês.

Trabalhamos com uma cifra negra de criminalidade que não conhecemos e que não chegam aos números oficiais; o sistema penal é anômico, uma vez que suas normas não cumprem as funções esperadas, eis que não protegem a vida, a propriedade, as relações sociais, sequer conseguem evitar o cometimento de novos delitos; o sistema é seletivo e estigmatizante, cria e reforça desigualdades, sendo o maior exemplo disso quem hoje compõe a massa carcerária brasileira, aliás, os últimos dados dizem com jovens, pobres e negros; o sistema é burocrata, não por menos é banalizador; o sistema concebe o homem como um inimigo de guerra, o qual deve ser caçado pelo exército da repressão; a prisão é ilegítima, dados os efeitos da prisionização e a violência em que se constitui; tratando-se o sistema penal, nesse breve contexto, portanto, numa máquina para produzir dor inutilmente.

Quando em pleno século XXI ainda presenciamos pessoas sendo amarradas nuas a postes e agredidas até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas, o mínimo que poderíamos fazer, já que o discurso humanitário, selado pelo direito internacional dos direitos humanos, não mais comove a irracionalidade da vingança, era nos questionar, aí já no âmbito do racional, de que direito penal falamos, ou melhor, ainda é possível falar em direito penal, ou não sem razão os abolicionistas estejam certos: já vivemos em uma sociedade sem direito penal?


REFERÊNCIAS

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 5. ed. São Paulo: RT, 2006.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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