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O que a emigração síria tem a ver com o Direito Penal?

Por Bruno Augusto Vigo Milanez

Basta transitar por qualquer manual de direito penal que em algum momento o leitor irá se deparar com a afirmação de que as sanções de direito penal cumprem com as funções de prevenção geral (relacionadas à coletividade) e especial (que se relaciona com o individuo que irá sofrer a pena).

A prevenção geral se subdivide em negativa e positiva. O primeiro aspecto consiste no efeito intimidatório do direito penal, de modo que a ameaça da pena teria o efeito de coibir os cidadãos da prática de crimes. O segundo viés consiste no reforço de valores sociais, ou seja, atribui-se ao direito penal a função de agregar a sociedade em nome de determinados valores comuns, comungados por todos (ou ao menos pela maioria).

A prevenção especial também é dividida em negativa e positiva. O efeito especial negativo do direito penal é representado pela inocuização/neutralização do indivíduo criminoso, na medida em que a pena cumpre a função de retirar o cidadão que praticou o crime do meio social. A prevenção especial positiva (ou doutrina ‘re’, na feliz expressão de Eugenio Raúl Zaffaroni) representa a função de ressocialização do cidadão preso, de modo que a pena teria o efeito de reintroduzir determinados valores no indivíduo, para posteriormente reintegrá-lo à sociedade.

Em que pese a construção de um discurso dogmático que pretende justificar a aplicação da pena, um olhar para a realidade desvela a falência da prisão. A criminologia crítica – ou sociologia do direito penal, na dicção de Alessandro Baratta – evidencia que as funções declaradas do direito penal não são efetivadas.

Com efeito, o reforço de determinados valores éticos, sociais e/ou culturais não é obra do direito penal, mas sim da escola, da família etc. Igualmente, o efeito intimidatório que se atribui ao direito penal é muitíssimo menor do que o propalado (basta pensar, caro leitor: será que a maioria das pessoas não mata umas as outras pelo medo de uma pena ou por outros fatores, tais como a educação? Será que a maioria dos homens heterossexuais não estupra mulheres em decorrência do direito penal ou em face da educação e do processo civilizatório?).

Também no âmbito da prevenção especial o direito penal se revela um fracasso quase que absoluto – ao menos do ponto de vista dos objetivos declarados –, sendo certo que na atualidade quase ninguém nega que o efeito ressocializador da pena é inexistente e que, ao revés, os presídios são fatores criminogênicos.

Mas se o direito penal tem se revelado um fracasso, qual a razão pela qual ainda persiste? A resposta a essa pergunta não é simples. A rigor, creio que sequer há apenas uma possibilidade de resposta a essa indagação. Mas talvez identificar funções não declaradas – porém cumpridas – pelo direito penal possa ser um caminho.

Tais funções emergem quando se insere o direito penal em um contexto maior, ou seja, em um modo de produção. Especificamente no modelo capitalista, pode-se afirmar que o direito penal cumpre com uma função muito específica, qual seja, manutenção e expansão do capital.

Essa faceta não declarada do direito penal é perceptível ao menos em dois momentos, quais sejam, criminalização primária e criminalização secundária. O primeiro momento é representado pela atividade do legislador, que elege pela criminalização de condutas os bens jurídicos tutelados pelo direito penal. O segundo momento se refere à criminalização concreta. Em que pese um discurso de isonomia que permeia o direito penal, qualquer estatística evidencia que as pessoas criminalizadas são, em sua extragrande maioria, homens, jovens, negros, com baixa escolaridade e que praticaram crimes em sua maioria vinculados ao tráfico de drogas e crimes patrimoniais.

Em suma, o direito penal exclui – pela pena – um grupo específico de pessoas, afastando-as do pleno exercício de direitos. Por outro lado, o direito penal imuniza determinadas castas sociais. Cumpre, portanto, uma dupla função: criminaliza alguns e protege outros.

Mas o que tudo isso tem a ver com a questão da emigração síria para os países de ‘primeiro mundo’?

Tudo!

Os noticiários têm divulgado diuturnamente o fluxo de pessoas sírias e de outros povos do oriente médio, principalmente para países europeus de ‘primeiro mundo’. Essas pessoas buscam aquilo que o seu país não lhes proporciona – estabilidade política, condições de vida saudável e segura, emprego, moradia, alimento etc – e encontram grande resistência de ingresso nos países para os quais pretendem reconstruir suas vidas.

O fundamento jurídico que dá suporte aos países de ‘primeiro mundo’ e que cria uma barreira ao ingresso de emigrantes repousa no conceito de cidadania. Curiosamente, a cidadania é tida por grande parcela dos constitucionalistas como um direito fundamental ou, no mínimo, como um fundamento do Estado Democrático de Direito. Porém, no âmbito do direito internacional, tem-se percebido que esse direito de cidadania tem servido como fonte de exclusão de determinadas pessoas – os não cidadãos – do ingresso nos países que oferecem as melhores condições materiais de vida.

Estabelecendo-se um paralelo, a função da pena para o direito penal cumpre a mesma função da cidadania no âmbito do direito constitucional e internacional. Em suma, tanto a pena como a cidadania cumprem uma dupla missão: funcionam como mecanismos de exclusão, seleção e marginalização de determinados indivíduos – que vivem à margem do gozo de quaisquer direitos – e , por outro lado, imunizam uma determinada classe social (ou Estado) hegemônica. Assim, o direito segue existindo apenas para alguns.

Uma possível solução para o ‘problema’ – tanto do direito penal como da cidadania – é encontrada em Luigi Ferrajoli:

“(…) tomar en serio los derechos fundamentales significa hoy tener el coraje de desvincularlos de la noción de ciudadanía: tomar cinciencia de que la ciudadanía de nuestros países ricos representa el último privilegio de estatus, la última rémora premoderna de las diferenciaciones personales, el último factor de exclusión y de discriminación – en lugar de ser factor de inclusión e igualación, como fue en el origen del Estado moderno –, la última contradicción irresuelta con la universalidad de los derechos humanos proclamada en las constituciones estatales y en las convenciones internacionales. Y desvincular los derechos humanos de la ciudadanía significa no sólo reconocer su carácter supraestatal y protegerlos exclusivamente dentro sino también fuera y contra los Estados. Significa también poner fin a ese gran apartheid que excluye de su goce a la gran mayoría de la humanidad y condena al hambre a más de mil millones de seres humanos. Significa, en concreto, transofrmar en derechos de la persona los únicos dos derechos de libertad reservados a los ciudadanos: el derecho de residencia y el derecho de circulación en nuestros países privilegiados. (…) Por una paradoja de la historia, estos mismos derechos – el de residencia y de circulación – fueron proclamados como universales justamente en el origen de la edad moderna, de nuestra propia cultura occidental. Em 1539, en sus Relectiones de Indis recenter inventis, que tuvieron lugar en la Universidad de Salamanca, Francisco de Vitoria formuló la primera doctrina orgánica de los derechos naturales, proclamando como derechos universales de todos los hombres y de todos los pueblos el ius communicationis, el ius migrandi, el ius peregrinandi in illas provincias et illic degendi, e incluso el de accipere domicilium in aliqua civitate illorum. En ese entonces, cuando los hombres eran concretamente desiguales y asimétricos, siendo impensable la migración de los indígenas hacia Europa, la afirmación de aquellos derechos ofreció a Occidente la legitimación jurídica de la ocupación del Nuevo Mundo y posteriormente, durante cinco siglos, de la colonización y de la explotación del planeta entero, primero en nombre de la ‘misión de evangelización’ y después de la ‘misión de civilización’. Hoy, cuando la situación se ha invertido – son los pueblos del tercer mundo los empujados por el hambre hacia nuestros opulentos países –, la reciprocidad y la universalidad de esos derechos es negada. Estos derechos han sido transformados en ‘derechos de ciudadanía’ – exclusivos y privilegiados, ya que están reservados sólo a los ciudadanos – y ni siquiera se ha tratado de tomarlos en serio y de pagar su costo. Por ello, sobre su efectiva universalización se juega en el futuro próximo la credibilidad de los ‘valores de Occidente’; de la igualdad, de los derechos de la persona, de la propia ciudadanía.” (FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Garantismo. 2. ed. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial Trotta, p. 38-40).

_Colunistas-BrunoMilanez

Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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