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O que é anarquia?

Por André Peixoto de Souza

“― Tá tudo tão difícil… Esse governo se transformou numa verdadeira anarquia!”

“― Esse quarto é uma anarquia! Arruma isso tudo menino!”

“― Que anarquia é essa? Virou o caos!!”

Tudo errado. O senso comum credita anarquia a caos, desordem, bagunça.

Errado!! MALATESTA chega a ser duro quando diz que ainda hoje [a palavra anarquia] é adotada neste sentido pelos ignorantes e pelos adversários interessados em distorcer a verdade.

Julgo pertinente e oportuno esclarecer.

Respondendo à pergunta-título: ANARQUIA é ausência de governo. Do grego, vem de “anarkhos”, em que “an” significa ausência e “arkhe” significa soberania ou reino ou poder. Decompondo a palavra, portanto, temos ausência de governo ou de poder ou de governança ou de autoridade estabelecida. É muito diferente de caos, desordem, bagunça! Da ausência de governo pode advir o caos, a desordem; mas uma coisa é uma coisa, e outra coisa é a consequência da coisa – que não é certa e, mesmo que seja, é um dos possíveis efeitos da primeira. E os efeitos são sempre defendidos ideologicamente.

É evidente que não podemos limitar o entendimento do ideal de anarquia à sua etimologia. É [muito] mais do que isso: é filosofia política, é ideologia, é práxis! E, como tal, apresenta uma série de fundamentações, na história – desde os preceitos bíblicos até a filosofia contemporânea (sim, na Bíblia! Dá uma olhada em Atos 2, 43-46 – que é apenas UM exemplo das muitas coisas que têm lá).

Pois: filosofia política, ideologia e práxis.

Como filosofia política pretende a eliminação de qualquer forma de governo oficial atrelado a uma forma-Estado. Sem discutir (ao menos aqui) origens remotas da filosofia anarquista, é mais visível a sua “retomada” no turbilhão iluminista, ganhando corpo no conturbado século XIX, dentro do contexto opressor suscitado pela expansão capitalista dada a partir da “revolução” industrial. Num dos textos precursores e mais celebrados GODWIN expressa a tese: o governo é ruim porque perpetua a dependência e a ignorância!

  • Democracia. O anarquismo não necessariamente exclui a democracia. Mas, convenhamos: apimenta-a. Pois fala em democracia direta ou democracia consensual. É óbvio que quando se fala em exercício direto e individual de voto ou, mais ainda, em consenso deve-se pensar na territorialidade. As comunas são a solução teórica para o exercício dessa esfera de democracia. Seja como for, democracia direta não deixa de ser pensamento relevantíssimo quando nos deparamos com a democracia (?!) que temos hoje!

A filosofia política consagra a ideologia: negação do princípio de autoridade nas organizações sociais (FAURE); ordem natural, harmonia de necessidades e interesses de todos, liberdade total com solidariedade total (MALATESTA); pois rejeitando o Estado, o anarquista autêntico não está rejeitando a ideia da existência da sociedade; ao contrário, sua visão da sociedade como uma entidade viva se intensifica quando ele considera a abolição do Estado (WOODCOCK).

  • A propriedade é um roubo. Essa é a resposta dada por PROUDHON à pergunta-título de sua obra máxima – O que é a propriedade? Isso porque o anarquismo pugna pelo sistema coletivo e público dos meios de produção, sem autoridade, pois a propriedade privada (dos meios de produção, em especial) expressa a maior fonte de desigualdade entre os homens.

Como práxis, anarquia é método e ação!

  • Economia solidária e cooperação. A prática da economia solidária é uma crítica imediata ao sistema capitalista, que procura alterar a permanente competição entre seres humanos para a sua cooperação. Cooperação em vez de competição; solidariedade em vez de individualidade; inclusão em vez de meritocracia excludente. A economia solidária identifica, no mercado, a presença de ganhadores e perdedores (enquanto os primeiros acumulam capital, galgam posições e avançam nas carreiras, os últimos acumulam dívidas pelas quais devem pagar juros cada vez maiores, são despedidos ou ficam desempregados – SINGER). Essa realidade, a longo prazo, consagra de uma vez por todas a desigualdade social. Como a anarquia vislumbra plena igualdade, a economia solidária pugna por uma vitória ampla e totalitária da associação entre iguais – “cooperativas” – onde ninguém manda em ninguém, e todos contribuem igualitariamente para o sucesso da empresa/produção, dividindo os consequentes resultados (sejam positivos, sejam negativos).
  • Pedagogia libertária. Os pilares de sustentação da pedagogia libertária são: igualdade, liberdade e solidariedade. Considerando o sistema econômico atual – e o seu acirramento – o tema principal do movimento da pedagogia libertária é a formação de pessoas (desde a infância) “libertas” da sociedade de consumo e “autônomas” na razão e na ação. Em última instância, a pedagogia libertária visa à formação de uma sociedade sem exploração, o que se dá pela via da ampla alteração da mentalidade: se o sistema capitalista não permite a liberdade de vontade, a pedagogia libertária permite a construção de uma legítima liberdade de pensamento, pressuposto da vontade.
  • Amor livre. Nasceu no contexto da opressão sexual especialmente voltada às mulheres e aos homossexuais. Deveras “experimentado” em comunidades anárquicas, o amor livre enfrentava os preconceitos, as limitações, as ausências de direitos e liberdades, pretendendo com isso a defesa expressa do amor e do prazer em qualquer grau. Os atuais movimentos LGBT colhem frutos do amor livre anarquista sustentado há mais de século!
  • Cultura Punk. É o anarquismo em tribos urbanas, em movimento, em comportamento. Subversão em estilo e estética. Visual e música são os elementos – e apelos – culturais mais evidentes da cultura punk. Poesia, política e crítica em: jeans, jaquetas pretas de couro, correntes e argolas presas às roupas, brincos e piercings e tatuagens pelo corpo, cabelos moicanos coloridos e espetados, RAMONES, SEX PISTOLS, THE STOOGES, TOY DOLLS, THE CURE, THE CLASH, RATOS DE PORÃO, PLEBE RUDE etc.

… Anarquia, este sonho de justiça e de amor entre os homens… (MALATESTA).

*****

P.S. 1: Respondi singelamente à pergunta-título. Pretendo haver esclarecido o termo e o conceito, ao menos em parte. Mas remeto ao leitor outra pergunta: o que seria do DIREITO na anarquia? Pista para resposta: não-direito! KROPOTKIN teoriza sobre a inutilidade e perniciosidade das leis (a metade das nossas leis não serve a qualquer outro propósito senão o de manter [a] apropriação, [o] monopólio em benefício de determinados indivíduos em detrimento de toda a humanidade). No que é acompanhado por TOLSTOI (as leis não foram feitas para atender à vontade da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder).

P.S. 2: Abrindo o jogo… Como os mercados negociam preços? Como, em Juízo – e na prática, sem pudores nem hipocrisias –, se inicia um processo de conciliação? Normalmente o postulante pede “a maior” e, entre propostas e contrapropostas, o acordo é fechado pelo “meio-termo”. Não seria a anarquia uma postulação política “a maior”? Para fecharmos acordo pelo “meio-termo”, que, seja como for, significa qualquer coisa MELHOR do que o que temos hoje??

_Colunistas-AndrePeixoto

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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