Por Marcelo Crespo
Na terça-feira o Vice-Presidente do Facebook foi preso em São Paulo porque a empresa não teria fornecido algumas informações requisitadas por um juiz da comarca de Lagarto/SE, o que se entendeu como um embaraçamento das investigações criminais. Hoje ele já se encontra solto em razão do deferimento de ordem de Habeas Corpus. Mas é preciso, não só entender o que ocorreu, mas refletir sobre como as coisas poderiam ser diferentes.
Trata-se de mais um caso brasileiro que chocou o mundo, afinal, em novembro de 2015 uma absurda decisão judicial determinou que o WhatsApp fosse suspenso por 48 horas. Leia aqui nosso texto sobre este assunto.
O motivo do caso atual ter repercutido tanto aqui quanto fora do país advém não só da própria prisão, mas também da recente batalha entre a Apple e o Federal Bureau of Investigation – FBI. Lá discute-se o acesso, pelo FBI, do conteúdo de um iPhone 5C que foi utilizado por Syed Rizwan Farook, norte-americano que matou catorze pessoas em San Bernardino, em dezembro do ano passado. O terrorista foi morto pela polícia, bem como sua mulher, que lhe deu suporte para a prática criminosa, mas o iPhone foi encontrado próximo ao local do crime, intacto. Desde então o FBI tem travado uma verdadeira batalha com a Apple para que a empresa desbloqueie o aparelho, mas a empresa tem se recusado porque teme que o FBI utilize o mecanismo de desbloqueio em outros aparelhos.
Vamos, agora, entender o caso brasileiro.
Primeiramente é preciso esclarecer que o caso está sob sigilo, de forma que os dados conhecidos são os noticiados pela mídia, mas, basicamente se limitando a uma nota publicada pelo Tribunal de Justiça de Sergipe e comentários dos advogados do Facebook. E ambos não esclarecem, de fato, o que ocorreu.
Pois bem.
O processo de onde foi emanada a ordem de prisão é de natureza criminal e versa sobre organizações criminosas e tráfico de drogas, portanto, suscetível à aplicação da Lei nº 12.850/13, que trata justamente das organizações criminosas. Mencionada lei possui uma norma prevista no §1º do art. 2º que prevê penas de três a oito anos de reclusão e multa para “quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Foi a interpretação literal deste dispositivo e de alguns do Código de Processo Penal que levaram o Vice-Presidente ao cárcere.
A nota publicada pelo Poder Judiciário esclareceu que o magistrado sergipano havia requisitado informações que jamais foram entregues e, mesmo com a imposição de vultosas multas diárias (inicialmente cinquenta mil reais, depois um milhão de reais), os dados não foram entregues. Os advogados do WhatsApp esclareceram que não poderiam fornecer as informações porque as mesmas encontravam-se criptografadas e nem mesmo a empresa teria acesso a elas. Além disso, afirmaram que a empresa não mantêm arquivadas as conversas trocadas pelo aplicativo, sendo, portanto, impossível fornecê-las.
Aqui cabe indagar: teria o magistrado requisitado informações cujo fornecimento era impossível? É possível ler na nota que foi requisitada quebra do sigilo de conversas havidas no aplicativo. De fato, a empresa não detém o conteúdo das mensagens trocadas pelas pessoas (embora isso seja discutível porque elas não ficam arquivadas assim que entregues de um celular ao outro, mas antes de serem entregues, passam pelos servidores do aplicativo). Teria a nota sido escrita com falha técnica? Ou o magistrado insistiu em algo de impossível obtenção? Por outro lado, cabe, ainda, perquirir as razões pelas quais a empresa não teria esclarecido a impossibilidade do fornecimento. Afinal, o não cumprimento de ordem judicial somente se justifica apenas em razão da sua impossibilidade. Como teria a empresa respondido ao ofício? Ou jamais ofereceu qualquer resposta?
Neste ponto é fundamental registrar muitas vezes as ordens judiciais são desprovidas das informações necessárias para o seu efetivo cumprimento, isto é, em alguns casos não consta da requisição a exata informação que se pretende obter, além de outras falhas bastante comuns (falta de período a ser pesquisado, faltam dados de identificação sobre quem se deseja pesquisar). Isso atrapalha demais a comunicação entre o Judiciário e as empresas dos mais variados ramos. Por outro lado, não cabe às empresas determinar como devem ser requisitadas, devendo-se registrar, ainda, que elas não podem simplesmente ignorar um ofício, ainda que com alguma falha. Acredita-se que, embora comum, isso não tenha sido a principal questão porquê parece óbvio que uma pendência assim não seria negligenciada pela empresa.
Como não temos o acesso aos autos, as questões acima ficarão pendentes de esclarecimentos…
Sobre o caso em questão, o Facebook alegou que ainda não havia finalizado a integração do WhatsApp em termos societários e que, por isso, não seria o proprietário do aplicativo, que não tem representação no Brasil. Fato é que ainda em 2014 a mídia noticiou esta finalização. Mesmo assim, são empresas distintas e uma necessariamente não tem os dados da outra. Afinal, conforme disse o advogado do WhastApp: “O Jorge Paulo Lemann é dono da Ambev e do Burger King, mas nunca ninguém acharia razoável pedir um documento do Burger King à Ambev ou vice-versa”. O mesmo valeria para o caso Facebook / WhatsApp.
Para complicar não se pode esquecer do Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/14, especialmente do art. 11 que dispõe que:
“Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.
E, ainda, o § 2o esclarece que:
“O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil”.
Então o WhatsApp, mesmo sem representação no país, deveria responder por meio do Facebook, integrante do mesmo grupo econômico. Mas o WhatsApp não pode fazer isso sem violar as leis norte-americanas. No caso de requisições do Brasil, o fornecimento das informações – segundo o WhatsApp – deveria ocorrer pelo Mutual legal assistance treaty – MLAT – tratado assistência jurídica mútua Brasil – Estados Unidos, inserido em nosso ordenamento pelo Decreto nº 3.810/01. Por outro lado, é preciso reconhecer que o MLAT está defasado e deveria ser atualizado para que houvesse a cooperação de forma mais rápida, porque, atualmente, a demora para o fornecimento das informações é incompatível com o timing das investigações.
Mas vamos às normas em si. O Código Penal tipificou o crime de desobediência, assim redigido:
Desobediência
Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Normalmente o descumprimento de ordem judicial se enquadraria neste tipo penal. No entanto a lei 12.850/13 trouxe uma previsão no §1º do art. 2º, nos seguintes termos:
Art. 2o Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
Foi, então, com fulcro no tipo penal acima que o magistrado decidiu decretar a prisão preventiva do Vice-Presidente do Facebook. Não se decretou a prisão preventiva por um simples descumprimento, mas por se entender que ao deixar de fornecer as informações estar-se-ia praticando o crime de embaraçamento das investigações de organizações criminosas. Todavia, para que a prisão fosse decretada seria necessário a instauração de investigação sobre a prática criminosa e, havendo requisitos exigidos pelo Código de Processo, aí sim, a decretação. Então a prisão preventiva dentro de um outro processo criminal onde o preso não é o investigado parece ser, no mínimo, uma grande precipitação.
Mas e o que dispõe o Código de Processo Penal sobre a prisão preventiva?
Ora, é sabido que a prisão preventiva é instrumento processual que pode ser utilizada quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, isto é para: a) garantia da ordem pública e da ordem econômica (p. ex.: impedir que o acusado/réu continue praticando crimes); b) conveniência da instrução criminal (p. ex.: evitar que o réu atrapalhe o andamento do processo, ameaçando testemunhas ou destruindo provas); c) assegurar a aplicação da lei penal (p. ex.: impossibilitar a fuga do réu, garantindo que a pena imposta pela sentença seja cumprida).
De todas as hipóteses da prisão preventiva, no caso em concreto só seria imaginável que a mesma fosse decretada com fundamento na garantia da ordem pública, fundamento este bastante questionável. Até porque “ordem pública” é um conceito vago, mas utilizado geralmente para atender ao “clamor público”, à “gravidade do delito” e à “credibilidade das instituições”, entre outras.
No caso em questão parece que a credibilidade do Poder Judiciário teria sido o mote. Mas seria ela proporcional ao fato?
O Código de Processo Penal estabelece uma série de alternativas e, em regra, somente deveria ser decretada a preventiva nos casos em que as medidas cautelares diversas fossem inadequadas ou insuficientes.
Coube ao art. 319 estabelecer as medidas cautelares diversas da prisão: a) comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; c) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; d) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; f) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração; g) fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; h) monitoração eletrônica.
Importante ressaltar que o §4o determina que a fiança poderá ser aplicada cumulada com outras medidas cautelares. Ou seja, antes de decretar a prisão, poderia o juiz ter aplicado quaisquer das medidas alternativas acima mencionadas, inclusive impondo fiança, que poderia ser fixada entre 10 e 200 salários mínimos (art. 325, II), podendo ser aumentada até mil vezes (§1º, III do art. 325). Uma rápida conta sobre os valores da fiança deixaria claro que o montante poderia alcançar vários milhões de reais, podendo ainda ser cumulada com as outras medidas.
Também deve-se considerar que, embora as penas do crime atribuído ao Vice-Presidente do Facebook sejam de até oito anos, dificilmente ele, caso fosse condenado, receberia penas maiores do que os três anos, o que, nos termos do art. 313 do Código de Processo Penal combinado com o art. 44 do Código Penal, jamais levaria o condenado ao cárcere, motivo pelo qual não há qualquer razoabilidade na prisão preventiva.
Além disso há a sempre discutida responsabilidade penal nas hierarquias corporativas, já que o crime deve ser imputado a todos aqueles que, de alguma forma, o praticaram. Estaria tão delineado assim o envolvimento do Vice-Presidente?
Toda a narrativa acima pretendeu demonstrar que, de fato, o caso é complexo, envolvendo muitas questões técnicas e jurídicas, razão pela qual a reflexão é fundamental.
Ao que tudo indica, a decisão do magistrado sergipano foi extrema propositalmente para que obtivesse resultados práticos na investigação que não obteria pela simples expedição de ofícios. Seria isso legítimo?
Bem, sabendo que há tremenda inércia dos Poderes Executivos (Federal e Estadual) para efetivar uma série de compromissos derivados da Constituição e das leis (dificultando o cumprimento de diversas normas), somado aos escândalos verificados no âmbito dos Legislativos, conclui-se que tanto o Ministério Público e o Judiciário estão se empoderando para solucionar problemas que não se relacionam diretamente com suas funções institucionais. Algo que gera preocupações e incertezas sobre até onde estas intervenções irão. Fato é que casos como este do Facebook somente deixarão de ocorrer se a boa vontade em inovar e modernizar o sistema jurídico prevalecerem.