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O que o futuro trará em termos de política criminal?


Por Adriane da Fonseca Pires


Será ele mais leve ou duro em relação ao crime (e como será o crime?) Podemos ser otimistas ou há mais motivos para uma “Depressão do Novo Milênio”? (“New Millenium Blues”). Essas são as perguntas que dão início ao texto denominado Três tendências no Novo Milênio: Gerencialismo, Populismo e a Estrada para uma Justiça Global (tradução livre) escrito pelo Professor Sebastian Scheerer, Criminólogo e Diretor do Instituto de Criminologia da Universidade de Hamburgo, publicado no ano 2000, trabalho escolhido por esta colunista para fazer esta resenha.

Partindo da premissa de que o aprendizado voltado para o passado é imprescindível para a preparação para o futuro do sistema de justiça criminal, uma vez que o passado dimensiona tanto o presente como o futuro, o professor Scheerer menciona a existência de livros escritos (previsões passadas) sobre o futuro do aprisionamento (v.g. O Futuro das Prisões, de Norval Morris), do policiamento (v.g. Policing the Future, de A.B. Hoogenboom) e do crime e da Justiça (Crime and Justice in the Year 2010, de J. Klofas e S. Stojkovic), os quais, contudo, não apresentam uma visão mais elaborada do controle social em geral. O autor destaca que um otimismo real é raro de se perceber. E isso não se deve ao fato de existir um número insuficiente de autores que tenham ideia de como as coisas poderiam ou deveriam melhorar, mas poucos se atrevem a dizer que haverá uma melhora em termos de Política Criminal.

O autor destaca que essa falta de otimismo, à primeira vista, não faria muito sentido, uma vez que, com a Modernidade, a brutalidade das punições deu lugar ao aumento da humanização da Justiça Criminal. Diante disso, qual seria o motivo de vários escritos denunciarem que tudo “vai de mal a pior”, que os níveis de encarceramento crescerão, que a rede de controle social ficará mais ampla, que os direitos individuais vão erodir e que a vida social, em geral, poderá ser comparada a uma prisão de segurança máxima?  Por que se fala da ideia de Foucault de que a sociedade está se tornando um cárcere? Por que esse pessimismo se a Modernidade reivindica ter alcançado o que ela se propôs a fazer?

A resposta a essa questão é que, apesar de a Modernidade ter alcançado uma relativa pacificação interna e um sistema de justiça criminal relativamente mais humanizado, tudo isso foi feito a custos exorbitantes e está relacionado à decepcionante performance do Estado que, por muitas vezes, se tornou uma fonte de violência muito mais terrível do que os perigos em relação aos quais ele supostamente deveria proteger seus cidadãos (v.g. Holocausto). Houve um sentimento profundo de quebra de promessas.

O Estado sofreu uma transformação no seu status. Antes visto com o potencial de controlar a violência individual, ele passa a ser visto com uma fonte massiva e, muitas vezes, incontrolável de violência. Essa desconfiança em relação ao Estado justifica o pessimismo, especialmente com relação aos criminólogos que compartilham uma apreensão geral acerca de um processo de totalização do controle (via manipulação, vigilância ou prisão).

Dada a reduzida capacidade do Estado para lidar preventivamente com conflitos sociais ou para pacificá-los com medidas relativamente simples, as tensões sóciais, estruturais e culturais podem aumentar até um ponto onde o problema mais importante do século XXI pode não ser tanto a ascensão do Estado a uma condição de Big Brother, mas sim um aumento descontrolado da criminalidade. A partir das questões postas acima, o autor destaca o que considera as três maiores tendências que podem dominar uma parte cada vez maior dos sistemas de justiça criminal e de suas filosofias – e que são, em parte, complementares, em parte contraditórias, mas que partilham, como uma de suas características, o fato de que as mesmas não estarem previstas no centro do discurso futurólogo do passado.

A primeira delas é o Gerencialismo (Managerialism) que é a tendência para retirar do sistema de justiça criminal componentes morais e propósitos idealistas, abordando o sistema de justiça como um problema de contabilidade, um problema atuarial. Fala-se e trata-se a Justiça Criminal sob o viés e com o uso de termos próprios da Gestão de Negócios. O Gerencialismo surge após o declínio do estado de bem-estar e de seu ideal de reabilitação – a crença de que “nada funciona” (nothing works). Somente nesse contexto, poderia ter surgido um entendimento que não considera relevante se os agressores são antissociais, maus, loucos ou qualquer outra coisa, mas sim uma prática que reflete o desejo de simplesmente gerir os problemas práticos de rastreamento de pessoas, de mantê-las encarceradas e de assegurar, em um nível suficiente, que elas não possam cometer crimes novamente.

A eficiência (relação custo/benefício) passa a ser o critério preferencial para a definição e construção de ações e de políticas voltadas à repressão e à prevenção da criminalidade. Os gerencialistas atuais não enxergam a prisão como um lugar onde pecadores se tornarão santos, ou indivíduos antissociais serão curados. Eles estão dispostos a apoiar a expansão prisão desde que isso lhes dê a sensação de poder incapacitar algumas espécies de criminosos e os mantê-los longe da comunidade. Para o gerencialismo, o crime não deve ficar fora de controle, mas ser contido; a população em geral deve aprender a viver com ele, ao invés de tentar, de alguma forma, erradicá-lo.

A minimização do risco ganha maior importância em relação à condenação moral de um comportamento, entendimento que é a base do que Malcolm Feeley e Jonathan Simon chamaram de Justiça Atuarial (Actuarial Justice: the Emerging New Criminal Law). O autor traz, como exemplo, a ação policial: a polícia vai desejar acumular conhecimento mais do que reagir a ofensas individuais, fará uso de saberes próprios dos serviços secretos, de agentes infiltrados, os quais permitirão o cometimento de delitos para garantirem o seu segredo, usarão técnicas de segurança e controle, o que colocará as liberdades individuais muito mais em risco do que se costumava perceber.  Em resumo: o gerencialismo é a expressão da sociedade do controle (Deleuze): não se importa em punir, mas em controlar; não se importa com a melhora, mas em lidar com algo difícil; não pensa em termos de culpa, mas de risco.

A segunda é o Populismo (Populismo), isto é, a tendência de deixar a política criminal ser governada pelas necessidades afetivas do público geral e por seus frequentes temores equivocados, ao mesmo tempo em que renuncia a uma avaliação sólida da situação. Essa tendência e antielitista e anti-intelectual, mas principalmente antielitista. O populismo defende os ideais da democracia direta e de senso comum, mas o seu zelo moral o torna uma presa fácil para lobbies profissionais e para a imprensa sensacionalista. No contexto da justiça penal, tem-se como exemplos a defesa da vingança, das retaliações, das punições exemplares e da pena de morte. Há a polarização em termos morais: precisa-se de ícones para representar “o Bom” e “o Mal” e não é apreciada uma situação ambivalente, como a de uma “Feiúra inocente”. O Populismo é altamente atrativo no que respeita a deixar pouco claras as fronteiras morais e a fomentar uma crescente distância social entre as “classes perigosas”, de um lado, a classe média ameaçada e as distantes classes altas por outro lado.

O populismo vai querer o espetáculo da pena de morte, enquanto os gerencialistas não verão sentido na perda de uma única vida com gasto de uma quantia considerável de recursos para e se obter um efeito mais do que questionável.

A terceira tendência é a chamada Estrada para uma Justiça Global (The Road towards Global Justice). Ela busca estender o alcance da Justiça Penal a dimensões que se pensava ser isentas de criminalização. Representa a crença crescente na necessidade de um reconhecimento global de alguns valores básicos e um esforço igualmente global para evitar a sua violação, punindo-os quem os ofende. O autor ilustra que os julgamentos de Nuremberg demonstraram a reivindicação de nações líderes do mundo para que se passasse a lidar com os ofensores dos interesses e valores da humanidade vitais não por meios de guerra, mas através dos tribunais. O estudo Edwin Sutherland acerca dos criminosos de colarinho branco apareceu no mesmo ano (1949). Outro exemplo citado no texto é a criação do Tribunal Penal Internacional em 1998.

Para o autor, estamos testemunhando uma repetição do processo de construção do Estado em um nível mais elevado. Ao invés do surgimento de muitas nações, vemos o surgimento de um único Estado, uma concentração global de sistemas de poder individuais, nacionais. A crítica feita respeita à circunstância de que seria autodestrutivo outorgar a um Império Global a esperança metafísica de ter que encarnar a objetividade, a justiça, a liberdade, a razão e o progresso de uma só vez. Aos Estados-nação cabe defender zelosamente a sua autonomia, enquanto a tarefa de uma Justiça Global deve ser restrita à guarda dos Princípios da Justiça Internacional, impedindo genocídio e guerras de agressão, tortura e limpeza étnica, os quais são tão estranhamente familiares aos nossos tempos supostamente tão iluminados.

Dada a atualidade do texto, compartilho com os caros leitores o convite à reflexão feito pelo autor. Pensemos!


REFERÊNCIAS

SCHERER, Sebastian. Three Trends into the New Millenium: The Managerial, the Populist and the Road Towards Global Justice. In: GREEN, Peter; RUTHERFORD, Andrew (eds). Criminal Policy in Transition. Oxford, Portland: Hart Publishing, 2000, p. 243-259.

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Adriane da Fonseca Pires

Servidora Pública Federal (Analista Judiciário). Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público.

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