O que são delitos cumulativos? (Parte I)
Por Douglas Rodrigues da Silva
O direito penal atual passou por grandes transformações, sobretudo após a década de 1990. O contexto de sua expansão propiciou novos paradigmas acerca de categorias da teoria do delito e permitiu o surgimento de novas espécies delitivas.
Num mundo cada vez mais integrado e globalizado, ganhou relevância o conflito instalado relativamente à distribuição dos novos riscos do desenvolvimento industrial. Como já tivemos oportunidade de ressaltar, desde o advento de uma “sociedade de riscos”, decorrente do êxito da primeira modernidade, as pessoas passaram a perceber e ser mais sensíveis aos riscos globais do desenvolvimento técnico-científico. A capacidade de prever catástrofes e o risco de que elas efetivamente ocorram assumiu o ponto principal no conflito social do século XXI.
O direito penal, como não podia ser diferente, considerando sua função primordialmente política, não ficaria impassível a tais mudanças. Talvez porque os demais ramos do direito, como o direito civil e o administrativo, já não são mais vistos como efetivos. No caso do direito civil porque os riscos acabam sendo protegidos por apólices de seguro, o que retira o caráter sancionatório da responsabilidade civil, e, no caso do direito administrativo, em razão de seu caráter burocrático e, não raras vezes, ligado a uma administração corrupta.
Além disso, os bens jurídicos da sociedade de riscos não podem mais ficar adstritos a situações individuais, pois, como bem ressalta ROXIN (2013, p. 19), o Estado deve assegurar a proteção de condições individuais necessárias (como vida, patrimônio, dignidade sexual etc.), mas também deve fornecer, por meio do direito penal, instituições estatais adequadas, pois sem elas não existe garantia de coexistência pacífica. Portanto, os bens jurídicos da pós-modernidade acabam por apresentarem-se de maneira transindividual.
Nesse contexto, o direito penal passou a assumir um novo caráter, até então despercebido, que é o de gestor setorial. Ou seja, o direito penal passa a ser um mecanismo de gestão de setores primordiais a um determinado Estado e sociedade. O direito penal da pós-modernidade passa a ser cada vez mais “administrativizado”, agindo, assim como o direito administrativo, sob o manto de um poder de polícia estatal a fim de coibir e sancionar práticas lesivas aos setores político-econômicos de um determinado Estado. Como afirmou SILVA SANCHÉZ (2013, p. 156), o direito penal assume o papel de gestor ordinário de problemas sociais.
Para cumprir com tal desiderato, ganha relevo uma espécie delitiva nova, mas essencial aos desafios desse direito penal do risco: “delitos de acumulação” ou “delitos cumulativos”.
Os delitos de acumulação visam antecipar a lesividade de determinadas condutas, impedindo, assim, a ocorrência de verdadeiros desastres. A lógica da modalidade é até simplória: pune-se uma conduta que, considerada sob o aspecto individual, não apresenta poder lesivo ao bem jurídico tutelado pela norma, mas que, no aspecto coletivo, poderá impingir-lhe um severo ataque (SILVEIRA, 2006, p. 147). Talvez o principal exemplo dessa modalidade no direito pátrio esteja nos delitos ambientais, conforme previstos na Lei nº 9.605/98.
O artigo 34 da Lei 9.605/98 apresenta, v.g., como crime o ato de pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente. Não importa se o ato consiste em pescar um único peixe, o que, de per si, seria algo insignificante. Mas aí fica o questionamento: e se todos resolverem fazer isso?
É essa pergunta o que move a tipificação de condutas lesivas por acumulação, o simples fato de que a repetição dessas condutas por diversas pessoas seria o suficiente para causar um forte ataque ao bem jurídico tutelado. Veja-se o caso da pesca em período de piracema. A interdição da pesca nesse período visa justamente impedir que seja prejudicado o momento de reprodução dos peixes, possibilitando, assim, um equilíbrio ambiental. A pesca de um único peixe nesse período em nada afetaria a piracema, mas e se todos resolvessem fazer o mesmo?
Como é de se perceber, o direito penal busca adiantar-se ao eventual desastre, criminalizando condutas individualizadas com o escopo de coibir a sua prática generalizada.
Entretanto, os delitos cumulativos não ficaram imunes às críticas dogmáticas, gravitando a discussão na órbita do princípio da lesividade. As principais críticas estavam na possibilidade de criminalização de condutas insignificantes penalmente a fim de coibir que outras pessoas as fizessem, utilizando o ser humano, em realidade, como instrumento do Estado e do direito. Outro ponto criticável estava na real extensão do dano futuro e se a acumulação prevista na norma deveria basear-se numa possibilidade hipotética ou se haveria a necessidade de certeza de dano pela repetição.
A resposta a crítica, pensamos, deverá obrigatoriamente passar pelos campos da imputação objetivo, risco permitido e necessidades político-criminais.
Porém, levantamos uma questão: é possível a aplicação do princípio da insignificância nos delitos cumulativos?
A resposta deixamos para a próxima coluna.
REFERÊNCIAS
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3. ed. rev. e. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.