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O que são delitos cumulativos? (Parte II)


Por Douglas Rodrigues da Silva


Na coluna passada, apresentamos as figuras dos delitos cumulativos, uma figura delitiva típica do direito penal da sociedade pós-industrial e, com mais frequência, utilizada como mecanismo de prevenção de condutas com alto potencial lesivo aos bens jurídicos da coletividade.

Os delitos cumulativos, relembrando, seriam compostos de condutas que, individualmente consideradas, não possuem caráter lesivo, mas sua repetição, enxergada sob o viés coletivo, poderia infligir sério ataque aos bens jurídicos da coletividade. O maior exemplo da modalidade, sem sombra de dúvidas, são os crimes ambientais – como o caso da pesca em período proibido, também ressaltada na coluna passada.

Por meio dos delitos cumulativos, o direito penal assume o papel de controlador de setores político-econômicos, assim como o direito administrativo. Tal fenômeno, conforme a doutrina, é visto como processo de “administrativização”: o direito penal como gestor de problemas sociais (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 156).

Todavia, questão espinhosa ao se passar os olhos sobre essas figuras delitivas é o problema da lesividade.

O postulado da lesividade apenas legitima a sanção penal quando determinada conduta apresenta risco efetivo ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Em outros termos, somente é passível de criminalização aquela ação que possa colocar em xeque o bem da vida tutelado, impedindo-se que o legislador obre de maneira ilegítima e criminalize aquilo que não ofereça risco algum – como por exemplo, condutas tão somente imorais ou irrelevantes.

Ao direito penal, pois, incumbe unicamente cuidar de condutas com potencial lesivo tal que o bem jurídico efetivamente corra o risco de ser atingido frontalmente. Em casos nos quais não há a possibilidade real de ataque, a doutrina entende pela aplicação do princípio da insignificância ou bagatela, cuja função é afastar a tipicidade dessas ações irrelevantes penalmente.

Mas quanto aos delitos cumulativos, como considerar a lesividade daquilo que individualmente não é lesivo? Aliás, existe a possibilidade de se aceitar dogmaticamente os delitos por acumulação? E, em caso positivo, existe a possibilidade de se reconhecer a insignificância dessas condutas?

Veja-se que o meio ambiente, v.g., é bem jurídico de suma importância à perpetuação da própria aventura humana no planeta Terra. Sem o equilíbrio ambiental, não há possibilidade de uma vida digna e, tampouco, a possibilidade de uma vida. A proteção da fauna e da flora merece, sim, o auxílio do direito penal, como medida extrema de coação de condutas lesivas. Nesse ponto, o direito penal atua, entendemos, como um verdadeiro promotor da noção de responsabilidade coletiva ao criminalizar, por acumulação, condutas lesivas a tal bem da vida que, por sua natureza, é inafastável.

Entretanto, se levarmos em conta o viés puramente dogmático, a construção dos delitos de acumulação levarão, invariavelmente, a ausência de ofensividade das condutas, pois, nesses casos, a lesividade advirá apenas da compreensão de um contexto que transcende os limites da própria conduta típica e o bem jurídico. Necessária seria a consideração de uma hipótese de repetição que poderá sequer existir (D’AVILA, 2014, p. 25-26).

Logo, a técnica de criminalização por meio da acumulação de condutas, a prima facie, apresenta-se como inaceitável em termos dogmáticos. Mas, por outro lado, não se pode perder de vista a necessidade real de lançar mão do direito penal como mecanismo de prevenção de ações lesivas à coletividade.

O Professor Fábio D’AVILA (2014, p. 26-29) assevera que os delitos de acumulação devem ser “salvos”, por meio da noção de “cuidado-de-perigo”. O cuidado-de-perigo pode ser visto como uma forma de ofensa que ocasiona um efetivo resultado jurídico, ainda que não naturalístico. O desvalor da ação se projeta a partir do contexto além da própria conduta, que permite aferir uma possibilidade de ataque/dano ao bem jurídico. É esse contexto, segundo o ilustre professor gaúcho, que permitirá a afirmação ou negação da possibilidade do dano.

Contudo, ao contrário dos delitos de perigo abstrato tradicionais, nos quais o contexto concreto fornece elementos aptos a análise da presença ou não da possibilidade de dano ao bem jurídico, os delitos cumulativos são caracterizados pela intensa complexidade. O delito cumulativo é típico de um contexto de complexidade, permeado pela interação de inúmeros fatores contextuais instáveis, muitas vezes incertos, meramente prováveis, mas que condicionam o intérprete no momento de afirmar a efetiva possibilidade de dano ao bem jurídico. No caso da poluição, por exemplo, podem concorrer fatores como condições climáticas, condições do ar, níveis preexistente de poluição atmosférica, situação geográfica e urbana que podem influenciar diretamente no resultado jurídico da conduta.

Porém, em contraposição aos delitos de perigo tradicionais, no delito cumulativo, a presença de todos esses fatores não afirmará tão só a possibilidade de um dano, mas, sim, o dano efetivo ao bem jurídico.

Segundo o professor Fábio D’AVILA (2014, p. 28), essa diferença se dá em razão da posição do bem jurídico nas condutas tradicionais e nos delitos cumulativos:

Como já tivemos oportunidade de observar, os tradicionais crimes de perigo abstrato não exigem a presença do bem jurídico no raio de ação da conduta perigosa. Logo, a conjugação dos fatores contextuais serve para indicar a possibilidade de entrada do bem jurídico no âmbito de atuação do perigo, ou seja, para indicar a intersecção da esfera de manifestação do bem jurídico com o raio de ação da conduta perigosa. Nos ilícitos ambientais em estudo, porém, isso se dá de forma diferente. Aqui, em razão da conformação do ilícito-típico e da matéria de proibição, o bem jurídico estará, através de sua expressão fenomênica, invariavelmente presente” (grifos nossos).

Nos delitos de perigo abstrato, como é o caso do crime de incêndio, por exemplo, a presença dos fatores contextuais permitirá concluir pela possibilidade do bem jurídico ingressar na órbita da conduta perigosa. De outra face, nos delitos cumulativos, ao revés, o bem jurídico sempre se fará presente. Com isso, não obstante a impossibilidade de visualização de todos os fatores contextuais relevantes na conduta, vez que instáveis e complexos, não se pode afastar a lesividade da conduta por si só, vez que o tipo não exige a presença concreta desses fatores – pois sua presença seria suficiente para ocasionar o efetivo dano ao bem jurídico. Nesses casos, deve-se observar se a conduta foi perpetrada numa situação de possível conjunção dos fatores contextuais necessários e relevantes.

A repetição, portanto, não será o fator decisivo na afirmação da presença do delito cumulativo. O relevante, nesses casos, é a análise, in abstrato, do impacto de determinada conduta em relação à possível presença de fatores contextuais instáveis. A partir disso, é possível se observar se determinada ação num contexto de instabilidade é capaz de corresponder a uma ofensa de cuidado-de-perigo.

Inexistindo essa relação, podemos afirmar a insignificância da ação e, por conseguinte, sua atipicidade. Como também podemos afirmar a adequação dogmática dos delitos cumulativos.

Uma lavadeira de rio, por exemplo, embora lance sobre as águas de um rio produtos químicos danosos, como alvejantes e águas sanitárias, não poderá ser criminalizada pelo delito ambiental se o contexto de sua conduta não permitir aferir a possibilidade da presença de fatores contextuais necessários. Na hipótese aqui tratada, a existência de um rio com baixos graus de poluição e com possibilidade de desintoxicação natural seriam fatores contextuais aptos a afastar a tipicidade da conduta, como também a quantidade irrisória de produtos lançados às águas. As possibilidades de dano são insignificantes.

E, veja-se, mesmo que a conduta da lavadeira for repetida diariamente, não persiste a possibilidade de conjugação dos fatores contextuais se a quantidade de químicos lançados for a mesma todos os dias, não ultrapassando os índices suportados naturalmente pelo rio, não haverá a presença do tipo. Ao contrário da situação em que se tem um rio poluído, com baixos fatores de filtragem, e centenas de lavadeiras em sua borda.

Assim, à guisa de conclusão, entendemos pela adequação dogmática dos delitos cumulativos e da possibilidade reconhecimento do princípio da insignificância, desde que a perspectiva a ser analisada não seja aquela relativa à repetição das condutas, mas, sim, da ofensa de um cuidado-de-perigo.


REFERÊNCIAS

D’AVILA, Fábio Roberto. O ilícito penal nos crimes ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. Revista do Ministério Público (Rio Grande do Sul), v. 75, p. 11-33, 2014.

SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3. ed. rev. e. atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

DouglasSilva

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