O que são prisões cautelares no Brasil? Entre Sérgio Moro e o MPF
Por Fernanda Ravazzano
Na semana passada abordamos duas novas modalidades de prisões cautelares, a prisão para delação e a prisão para recuperação de valores. A primeira, sem qualquer previsão legal ou mesmo adequação com o determinado em nossa legislação; a segunda trata-se de projeto temerário de lei proposto pelo Ministério Público Federal no chamado “pacote anticorrupção” que, como vimos, vai muito além do mero “combate” à corrupção, violando em vários termos a Constituição Federal.
Há alguns dias atrás fomos surpreendidos com mais novidades, violando a Carta Magna e até a lógica do absurdo: temos agora novos critérios da “prisão para delação” e a possibilidade de decretação de ofício pelo juiz da prisão temporária.
Como professora pergunto: o que devo agora ensinar sobre prisões cautelares no Brasil? Como advogada pergunto: o que posso esperar do Ministério Público e do Poder Judiciário para garantir a liberdade de meus clientes? Como cidadã pergunto: quantas pessoas não estão com a liberdade em risco?
NOVOS CRITÉRIOS PARA A DELAÇÃO E O VAZAMENTO DE INFORMAÇÕES
Como foi amplamente noticiado, a delação de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, teria citado o Ministro Dias Toffoli. Também segundo notícias, a decisão do Procurador Geral da República de descartar a delação teria sido em razão do vazamento do seu conteúdo para a imprensa.
Ora, até pouco tempo atrás outros depoimentos foram veiculados pela imprensa e foram prontamente aceitos pelo MPF tendo, inclusive, liberado os investigados, assegurando-lhes o direito a responder ao processo em liberdade, como relata o jornalista Bernardo Mello Franco, em relação às delações de Delcídio do Amaral, Sérgio Machado e Ricardo Pessoa.
Se já não bastasse a impropriedade da prisão para delação, a aplicação de distintos critérios para o aproveitamento do seu teor causa ainda mais espanto e incertezas, tanto para os investigados quanto para a sociedade. Quais critérios o MPF está utilizando para aproveitar as delações? Qual conteúdo pode ser aproveitado? Em quais hipóteses o material será descartado? São perguntas que permeiam desde as partes interessadas, abrangendo a sociedade e os juristas. Quais são os limites da delação?
Há também notícias de delações requeridas pelo parquet aos investigados, em claro direcionamento do seu conteúdo, sob pena do seu não aproveitamento. Até onde se sabe, o critério para aproveitamento ou recusa da delação consiste na transmissão de fatos imprescindíveis para as investigações e desde que demonstrada a veracidade de tais informações. O que se deseja ouvir é informação capaz de auxiliar na elucidação da autoria e/ou materialidade do fato, como previsto no artigo 4° da Lei 12.850/13:
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
§1o Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.
A eficácia da colaboração é essencial para a aceitação da delação. Mas parece que no Brasil o critério é trazer informações que interessam a determinado grupo e não a sociedade…
A PRISÃO TEMPORÁRIA DECRETADA DE OFÍCIO PELO JUIZ MORO
De acordo com decisão do Ministro Felix Fischer do Superior Tribunal de Justiça, publicada no diário eletrônico em 16 de agosto de 2016, o juiz Sério Moro decretou de ofício prisão temporária de um dos investigados pela operação “Lava-Jato”. Consta na mencionada decisão:
De maneira que o magistrado singular atuou de ofício, quando não lhe era dado assim proceder, cumprindo dizer que tal direcionamento legislativo, sobre ser vedada a decretação de prisão temporária ex officio, deriva justamente da conformação dada pela legislação processual brasileira ao sistema acusatório, em ordem a que, quando se trata ainda da fase investigatória, observe o juiz uma certa contenção.
Não há, de outra parte, uma relação de continência entre a prisão preventiva e a prisão temporária, como se essa última se revelasse um minus diante daquela.
O argumento, de resto simplista, de que “quem pode o mais, pode o menos “, não vinga diante de modalidades de prisão distintas, seja quanto aos objetivos, seja quanto aos prazos, e, bem assim, evidentemente, quanto ao modo de seu deferimento.
Isto porque o axioma “in eo quod plus est semper inest et minus” (“quem pode o mais, pode o menos”), vale dizer, a argumentação “a maiori ad minus” , não se compraz de situações que foram diferenciadas pelo próprio legislador, sob pena de consentir com a possibilidade de exercício de poderes, pela autoridade judicial, que simplesmente não lhe foram conferidos ou foram-lhe mesmo negados.
Percebemos que a postura do magistrado é tão infeliz quanto a finalidade da lei da prisão temporária: a averiguação – sim, não custa nada lembrar que a própria prisão temporária é conhecida por ser uma maquiagem da famigerada prisão para averiguação, não mais admitida pela Carta Magna.
É, portanto, equivocada, ilegal e inconstitucional, não apenas tal modalidade de prisão, mas, sobretudo, a postura do juiz. Como podemos chamar a ilegalidade da ilegalidade? Suprailegalidade? Foi justamente o erro que o magistrado cometeu, aliás, mais um equívoco, como pondera Rômulo Moreira:
Mais um erro (?) grosseiro do Juiz Moro. Já são inúmeros!
A Lei nº. 7.960/89, que trata da prisão temporária, é de uma clareza absurda ao impor que a prisão temporária só pode ser decretada em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público. Aliás, no primeiro caso, o Juiz, antes de decidir, obrigatoriamente deve colher o parecer do Ministério Público. Neste sentido, confira-se o art. 2º. da referida lei.
Aliás, creio que se fosse dada a oportunidade de mil acadêmicos de Direito interpretar tal dispositivo (qualquer que fosse o método hermenêutico utilizado), um o faria no sentido de que é possível a decretação da prisão temporária de ofício, isto é, sem que tenha havido um pedido expresso, seja do Ministério Público, seja do Delegado de Polícia. Sim, afinal de contas, dentre todos, sempre haverá um estúpido!
Estamos diante de outra decisão do juiz ao arrepio da lei, afrontando direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal; mas há quem o defenda, asseverando que os fins justificam os meios. Será então que a liberdade não vale mais nada? Nem a legalidade?
O QUE ENSINAR SOBRE PRISÕES CAUTELARES?
O que eu posso ensinar sobre prisões cautelares? O que posso esperar dos nossos juízes e acusadores? Percebemos dos dois casos citados acima que, no Brasil, vale tudo: vale decretação de prisão cautelar não prevista em lei, vale proposta claramente inconstitucional por parte do órgão que deveria ser fiscal da lei, vale estabelecer critérios para aceitação de delação premiada de acordo com a conveniência de quem investiga e não em razão de seu conteúdo, veracidade e indispensabilidade para as investigações e vale ainda violar frontalmente a lei para se prender.
Afinal, o que é a liberdade diante do que se deseja?