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O que significa vulnerabilidade física, biológica e biopsicológica?


Por Ruchester Marreiros Barbosa


Imaginemos o caso hipotético de uma pessoa, maior de 18 anos, de gênero masculino ou feminino, vítima da seguinte ação criminosa: o agente faz com que a mesma ingira substância que lhe retiraria o poder de resistência, como o álcool ou substâncias de efeitos análogos. Diante do torpor dela e a sua falta da discernimento e inconsistência moral de seus atos e, consequentemente, com sua capacidade de decidir diminuída, este agente pratique com ela conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

Estaríamos diante de um fato na qual se amoldaria à tipicidade formal e material do art. 217-A, §1º, in fine, do CP, quando aquela, “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”, cuja pena é bem mais alta do que a prevista para o art. 213 do CP, apesar de ambas as modalidades criminosas serem consideradas hediondas pela lei 8.072/90.

Diante do conhecimento do crime de estupro narrado pela vítima, o delegado poderia agir de ofício, como instaurar inquérito policial ou até mesmo determinar a lavratura auto de prisão em flagrante, independentemente da vontade da vítima?

Antes de responder à esta indagação teríamos que superar uma outra de natureza penal, mas umbilicalmente relacionada à natureza da ação penal: Qual seria a diferença entre o art. 217-A, §1º e o seu caput? Neste diapasão, haveria correlação entre as diferentes teleologias das expressões “menor de 18 (dezoito) anos” e “ou pessoa vulnerável”, empregadas no art. 225, parágrafo único do CP? Teria havido distinção, pelo legislador, entre as elementares “vulnerável” e “pessoa vulnerável” para a tipificação dos delitos acima mencionados e uma correlação necessária entre estes e uma ação penal pública incondicionada?

Salientamos, claro, que na hipótese de uma ação violenta para a prática de ato libidinoso sem a ingestão de substância que lhe retirasse a possibilidade de resistência não há dúvidas de que a ação penal seria pública condicionada a representação, conforme o art. 225, caput do CP e no prazo previsto no 38 do CPP, sem olvidarmos, todavia, que a ação violenta também retira da vítima, maior de idade a capacidade de resistência ao ato violento, em seu aspecto ontológico.

Em outras palavras, a vulnerabilidade da violência é física, ou seja, por uma ação física, como a força empregada por algum objeto ou pessoa sobre o corpo da vítima. Pode, ainda, esta força física lhe retirar ou não a consciência, como por exemplo uma pancada na cabeça. Não deixa de existir nestes casos uma circunstância vulnerante ou de vulnerabilidade, como elementar do tipo. Lembrando que esta circunstância não é novidade em nosso código, que a apresenta, em outras ocasiões, como uma circunstância agravante, conforme art. 61, II, “c”, do CP.

Distinta é a vulnerabilidade tratada nas elementares constantes no art. 217-A, caput e §1º do CP e a correspondente manifestação de vontade das pessoas enumeradas no art. 225, parágrafo único do CP.

Nós trataremos destas elementares de circunstâncias vulneráveis biológicas (menor de 14 anos) e biopsicológicas (pessoas vulneráveis). Em paralelismo com as circunstâncias já previstas no código para se analisar a imputabilidade do autor é mais racional e objetivo analisa-las como também relevantes para a conduta da vítima nesses crimes, como um critério biopsicológico, que consiste na observação de um agente causador – causa – e sua relação ou vínculo com a consciência dos atos queridos pela vítima.

Impende salientar que grande parte dos doutrinadores não realizam a distinção entre vulnerável e pessoa vulnerável, bem como entre vulnerabilidade permanente e temporária, como sinalizou o STJ, em seu Informativo 553, HC 276.510-RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/11/2014, DJe 1º/12/2014, bem como alguns doutrinadores (GILABERTE, 2014, p. 103):

“Ainda que esta tenha por um período tênue sua capacidade cognitiva obnubilada, em curto espaço de tempo já se torna apta a conveniência de suprir a condição de procedibilidade. Portanto, fica claro que a exceção legal somente tem aplicação aos casos de incapacidade prolongada”.

No caso concreto decidido pelo STJ a vítima era uma mulher maior de idade, na qual entendeu que o termo “vulnerável” previsto no art. 217-A, §1º do CP, não possui a mesma conotação de “pessoa vulnerável”, disposto no art. 225, parágrafo único do CP.

Aury Lopes chega a traçar distinção entre vulnerabilidade material e processual, entendendo como material o tratamento que o legislador atribui ao maior desvalor da conduta quando o agente atinge a dignidade sexual de alguém em situação de vulnerabilidade, merecendo reprimenda maior prevista no art. 217-A do CP. No entanto, a processual diz respeito a capacidade processual no momento de sua manifestação, não alcançando a autonomia da vontade daquele que após a situação temporária de vulnerabilidade possui pleno gozo de suas razões para decidir se impulsiona ou não a persecusão penal.

Desta forma, como o STJ, confrontando o julgamento acima com o REsp. 1480881/PI (2014/0207538-0), Relator Min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 26/08/2015, entendeu em hipótese de menor idade, pessoa vulnerável não se confunde com vulnerável. Esta diz respeito à circunstância temporária e àquela e incapacidade ou impossibilidade permanente, mesmo que a relação sexual entre o maior e o menor de 14 seja com consentimento dos pais, pois esta é “pessoa vulnerável” e a ação penal, portanto é pública incondicionada, conforme destacamos em um de seus trechos:

“(….) 7. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas – em menor ou maior grau – legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar. (….)”.

Nos parece que devamos caminhar pela lógica apresentada pelos professores e a dos julgados mais recentes do STJ, no sentido de que há de fato que se distinguir os tipos de vulnerantes, mas discordamos da alegação de que a raciocínio deva se operar sobre o aspecto temporal, não somente por ausência de previsão legal, mas porque devemos buscar critérios objetivos (regras) para as justificativas jurídicas de seus atos, sejam eles do autor ou da vítima.

Portanto, justificar a vulnerabilidade como aquele que se prolongue até a manifestação da vontade pela representação, no caso do menor de 18 anos, e a temporária,  cuja vulnerabilidade não alcança o momento em que a vítima possui discernimento para decidir pela movimentação do sistema de controle social penal por intermédio da representação, não nos parece o mecanismo mais seguro para justificar a escolha da vítima em evitar ou não o strepitus judicii (escândalo causado pela divulgação do fato), principalmente seus reflexos com relação à prova destas circunstâncias vulnerantes.

Percebe-se, portanto, que há distinção, entre estar vulnerável (art. 217-A, caput, CP) e ser vulnerável (art. 217-A, §1º do CP c/c art. 225, parágrafo único do CP), no entanto, a justificativa não seria pelo aspecto temporal, denominado de vulnerabilidade permanente ou temporária.

Um dos aspectos considerado pelo legislador foi o biológico, ou seja, a mesma lógica utilizada para análise da inimputabilidade penal dos menores de 18 anos previstos nos artigos 27 do CP e 228 da CR/88. Assim, em se tratando de vítima menor de 14 anos, e a tutela do desenvolvimento sexual a vulnerabilidade é biológica, tendo sido desconsiderado pelo legislador a capacidade de querer o ato sexual em sua vontade livre, em razão do art. 217-A, caput do CP.

O outro critério foi o biopsicológico para o estupro de vulnerável por equiparação, previsto no art. 217-A, §1º do CP, como ocorre no art. 26 e art. 28, §1º, ambos do CP e 45, caput, da Lei 11.343/06, na qual o legislador relaciona uma causa ou elemento provocador, e outro relacionado com o efeito, ou a consequência psíquica provocada pela causa, que no caso da vítima seria sua vontade em querer o ato sexual, considerando sua autonomia da vontade, denotando-se assim, uma circunstância vulnerante biopsicológica.

As distinções destas circunstâncias são imprescindíveis porquanto refletem sobre a teoria geral da prova, ou seja, no objeto e elemento da prova, que serão distintos no estupro (art. 213, caput e parágrafos do CP) e estupro de vulnerável por equiparação (art. 217-A, §1º, CP). As circunstâncias ou situações de vulnerabilidade físicas e biopsicológicas, pela sua própria natureza precisam ser objeto da prova, ou seja, circunstância relevante e que precisa ser provado na investigação criminal e na instrução, o que não é necessário no caso da situação de vulnerabilidade biológica (menor de 14 anos).

Quanto à manifestação de vontade da vítima, haverá na circunstância vulnerante física ou biopsicológica uma regulamentação distinta, ou seja, o legislador adotou outra política criminal com relação à ação penal no art. 225, caput e seu parágrafo único que se trata de uma matéria processual, retirando a manifestação da vontade da vítima ou de seu representante ao prever como ação penal pública incondicionada quando a vítima for  “menor de 18 anos ou pessoa vulnerável”, ignorando a elementar biopsicológica prevista no art. 217-A, §1º, CP.

Aqui reside a confusão do legislador entre o penal (bem jurídico tutelado) e o processo penal (ação e processo) numa mesma lei alteradora do texto, Lei 12.015/09.

Os conceitos de vulnerabilidade permanente e temporária ou de vulnerabilidade material e processual não se adequam com razão sistêmica ao problema entre o bem jurídico tutelado do art. 217-A, caput (menor de 14 anos) e o art. 213, CP, que abarca o maior de 14 e menor de 18, desde vulnerados fisicamente (com violência), na qual a ação penal seria pública condicionada à representação, que se confronta com o art. 225, parágrafo único do CP, na qual dispensa, criando-se uma antinomia.

A melhor forma de se compreender o sistema inserido pelo legislador e os direitos fundamentais é tutelar o bem jurídico da dignidade sexual, cujas circunstâncias previstas no art. 217-A, §1º, CP merecem maior reprimenda penal, razão porque possui uma pena maior que o art. 213, caput do CP, no entanto, há que se interpretar com razão humana de atos a manifestações humanas, inclusive da vítima.

Diante, portanto, de uma circunstância ou situação de vulnerabilidade biospsicológica (elementar do art. 217-A, §1º), o direito penal considerou violada a dignidade sexual da vítima em circunstância de algum elemento provocador – causa –  como enfermidade ou deficiência mental, ser maior de 14 e menor de 18, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência, vinculada ou relacionada a sua consciência e vontade a um fim lícito (ato libidinoso), consequentemente, com discernimento para a prática do ato.

A Lei 12.015/09 não penalizou o ato libidinoso entre pessoas maiores de 14 e menores de 18 anos, sob pena de se criminalizar a vontade da vítima, punindo-se o seu parceiro, consequentemente, não interpretar desta forma, equivaleria a ignorar uma autonomia da vontade não proibida e aumentar a controle social penal por razões religiosas e morais, que são inerentes ao “ser” e não do “dever ser” da vítima, dos pais ou responsáveis, pois poderiam ter, a depender do caso concreto, orientações morais distintas, como no caso de adolescente de 17 anos e 6 meses com educação sexual o suficiente e discernimento para a prática do ato. E as pessoas enfermidade mental (parcial, já que o legislador não distinguiu), quantos não estão adaptados e possuem discernimento para entender o ato, com autonomia e orientados à vida adulta por seus responsáveis?

Verifica-se que o legislador confundiu as estações que digam respeito ao bem jurídico tutelado (penal) e sua instrumentalidade (ação e processo).

Assim, na ação penal no estupro de vulnerável por equiparação será imperioso analisar a causa e a consciência dos atos queridos pela vítima livre na causa em respeito “à autonomia individual da vítima” (NICOLITT, 2016, p. 292), que na visão deste autor, apesar de não abordar o tema neste aspecto, advoga a ação penal pública mediante representação, nos crimes de estupro com resultado lesão grave ou morte, o que reforça o entendimento dogmático a despeito das garantias fundamentais e dignidade da pessoa humana que digam respeito à autonomia daquela, sem que isto signifique um “retrocesso social” a despeito da ação penal pública mediante representação à luz da Lei 12.015/09 em relação à redação antiga da novatio legis, que previa ação pública incondicionada (em algumas hipóteses), bem como é contrário a aplicação analógica da súmula 608 do STF, mesmo após a nova regulamentação dos crimes contra à dignidade sexual.

Em linhas gerais, sem esgotar o tema, buscamos uma alternativa na classificação da vulnerabilidade em física, biológica e biopsicológica como uma forma de harmonizar o sistema à luz da Constituição da República para distinguir aquilo que é objeto de prova no processo penal, do bem jurídico tutelado e o tipo de ação penal, respeitando-se a autonomia da vontade da vítima nos crimes de estupro de vulnerável por equiparação, o que nos força concluir que o art. 225, parágrafo único do CP somente pode ser interpretado a luz do critério biopsicológico.

A idade, como elementar objetiva do tipo penal, ou seja, sua consideração isoladamente considerada, atende ao critério de vulnerabilidade biológica (art. 217-A, caput, CP – menor de 14 anos) e a previsão de ação penal pública incondicionada somente possui sentido com relação a este crime, não se aplicando ao art. 213, caput, e art. 217, §1º do CP.


REFERÊNCIAS

GILABERTE, Bruno. Crimes contra a dignidade sexual. Rio de janeiro: Freitas Bastos, 2013.

NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

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Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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