O que você precisa saber sobre o tráfico privilegiado (Parte 4)
O que você precisa saber sobre o tráfico privilegiado (Parte 4)
O “tráfico privilegiado”, como é popularmente chamada a causa de diminuição de pena do artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas, é muito importante para a prática penal, especialmente por trazer consideráveis modificações na pena aplicada, tanto com relação ao tempo de cumprimento quanto à forma de aplicação da pena.
Segundo o texto da lei:
Nos delitos definidos no caput e no § 1° deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
O meu objetivo é fazer uma análise minuciosa da referida causa de diminuição, uma espécie de guia com as informações que você precisa ter para compreender o tema, motivo pelo qual dividi o conteúdo em 04 (quatro) textos, sendo que esse é o quarto e último.
Critérios para diminuição da pena
Para encerrarmos nossa série sobre o “tráfico privilegiado”, é imprescindível que a gente aborde os assuntos relacionados aos critérios para diminuição da pena, pois o dispositivo em estudo não especifica qual critério deve o juiz levar em conta na escolha do índice de redução — entre 1/6 (um sexto) e 2/3 (dois terços).
Assim, grande número de juízes passou a ter como critério a quantidade, natureza e diversidade da droga apreendida com o acusado, isto é, quanto maior a quantidade, a diversidade ou a potência da droga, menor a redução.
Acontece que o artigo 42 da Lei de drogas estabelece que, na fixação da pena-base, os principais fatores que o juiz deve ter em conta são exatamente aqueles atinentes à quantidade e à natureza da droga.
Bis in idem
Assim, tornou-se comum a aplicação, na primeira fase da dosimetria, de pena acima do mínimo legal, em razão da quantidade e da natureza da droga, atendendo-se ao disposto no artigo 42, e, posteriormente, na terceira fase da dosimetria, a redução em índice menores, justamente em razão da quantidade e da natureza da droga.
Ocorre que o Plenário do STF, ao julgar os HC 112.776 do Mato Grosso do Sul e n.º 109.193 de Minas Gerais, entendeu que isso representa bis in idem, porque a quantidade e a natureza da droga estariam a ser consideradas duas vezes na dosimetria, ou seja, na primeira e na terceira fase da dosimetria.
É possível encontrar esse entendimento em outros julgados do STF, como no caso do HC 120.604 do Paraná; o HC 119.357, também do Paraná; o HC 108.387 de São Paulo; o HC 101.119 do Mato Grosso do Sul, dentre vários outros.
Segundo esse entendimento, então, o magistrado não pode utilizar o critério (quantidade e natureza das drogas) duas vezes, devendo escolher se o utilizará na primeira ou na terceira fase da dosimetria.
Teoricamente, o correto seria levar em conta referidas circunstâncias — quantidade e natureza da droga — na fixação da pena-base, na medida em que o artigo 42 é expresso, ou seja, menciona tais circunstâncias como fatores preponderantes para o estabelecimento da pena-base, na primeira fase; ao passo que o artigo 33, § 4º, como já dito, não faz qualquer menção a elas (quantidade e natureza do entorpecente).
Inclusive, o STJ já decidiu no sentido de que sequer é possível levar em consideração a quantidade de drogas para decidir o quantum diminuição, devendo ser utilizado apenas para a fixação da pena-base, na primeira fase da dosimetria:
A diversidade de substâncias entorpecentes não impede, por si só, a redução máxima possível, dois terços, prevista no artigo 33, § 4.º, da Lei 11.343/2006, se preenchidos, como no caso, os demais requisitos. A diversidade de drogas deve ser considerada na fase do artigo 59 do Código Penal. Se, nessa fase, o juiz se omite, não pode suprir a omissão na última fase, negando ao agente o direito à redução prevista no mencionado §4°.
Esse é um assunto que não é unânime, sendo possível encontrar decisões para todos os lados.
Já vimos que o STF já decidiu que não é possível utilizar a quantidade e variedade de drogas para não aplicar a causa de diminuição; assim como ser bis in idem utilizar a quantidade de drogas para aumentar a pena base na primeira fase e para agravar a fração a ser aplicada na terceira fase.
Todavia, também é possível encontrar decisão do STF no sentido de que não configura bis in idem aumentar a pena base na primeira fase utilizando a quantidade de drogas, bem como para não aplicar a causa de diminuição na terceira fase, por entender que a quantidade de drogas comprova a dedicação à atividade criminosa, como no caso do RCHC 94.806 do Paraná, segundo o qual:
Não se aplica a causa de diminuição inserta no § 4º do artigo 33 da Lei n.º 11.343/2006, na medida em que, conforme consignado no acórdão impugnado, de forma devidamente fundamentada, o Paciente não preenche os requisitos legais.
Na hipótese, destacou o Tribunal de origem que a quantidade da droga apreendida (três quilos de cocaína) evidencia o seu grau de envolvimento com o tráfico de drogas, distinguindo-o, portanto, do traficante ocasional.
Trouxe esse precedente para demonstrar como existe decisão para todos os lados, o que não pode fazer com que deixe de lutar pelo que há de melhor na técnica jurídica.
Por isso, te aconselho sempre a lutar pela não utilização da quantidade de drogas como forma de negar a aplicação da causa de diminuição, bem como para defender a não aplicação da quantidade de drogas em mais de uma fase da dosimetria, sob pena de caracterização de bis in idem.
Bis in idem e reincidência
Superada essa questão, precisamos analisar a ocorrência de bis in idem com a utilização da reincidência para fins de agravar a pena na segunda fase da dosimetria e para negar a aplicação da causa de diminuição na terceira fase da dosimetria.
O STJ tem caminhado para o entendimento de que não configura bis in idem aplicar a agravante genérica da reincidência na segunda fase da fixação da pena e, em seguida, recusar a aplicação do redutor em face da mesma circunstância.
Como no caso do julgamento do HC 344.737-SP, segundo o qual:
Não há falar em bis in idem em razão da utilização da reincidência como agravante genérica e com o objetivo de afastar o reconhecimento da causa especial de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/06, porquanto é possível que um mesmo instituto jurídico seja apreciado em fases distintas na dosimetria da pena, gerando efeitos diversos, conforme previsão legal específica.
Todavia, entendo que é possível compreender a ocorrência de bis in idem na utilização da reincidência em duas fases da dosimetria, porque o fato de o réu ser reincidente pode agravar a pena uma única vez dentro da dosimetria.
Assim, utilizar a reincidência para agravar a situação do réu na segunda e na terceira fase da dosimetria da pena constitui bis in idem, devendo ser utilizada ou na segunda fase ou na terceira, mas jamais em ambas as fases.
Associação para o tráfico e causa de diminuição
Para encerrarmos a aula de hoje e a análise da causa de diminuição do artigo 33, § 4º, vamos falar sobre a condenação pelo crime do artigo 35 da Lei de Drogas e a aplicação do benefício legal.
O entendimento jurisprudencial majoritário é no sentido de que a condenação pelo crime de associação para o tráfico afasta a aplicação da causa de diminuição, principalmente pelo fato de que, para a caracterização da associação é preciso demonstrar a estabilidade e a permanência do grupo.
Tais fatores levam o magistrado a entender, portanto, que o agente se dedica à atividade criminosa ou integra organização criminosa e, assim, não pode ser beneficiado.
O STJ, no julgamento do HC 236.0628 – São Paulo, decidiu que:
A condenação pelo delito de associação para o tráfico ilícito de drogas evidencia a dedicação do Paciente à atividade criminosa, inviabilizando, portanto, a aplicação da causa de diminuição de pena inserta no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006.
Conclusão
Por fim, para encerrarmos a análise do tráfico privilegiado, podemos resumi-lo como sendo uma causa especial de diminuição de pena (aplicada aos primários, de bons antecedentes, que não se dedicam às atividades criminosas e não integrem organização criminosa), devendo ser feita na terceira fase da dosimetria da pena, na fração de um sexto a dois terços, de natureza não hedionda e passível de substituição por penas restritivas de direitos.
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