O raio que caiu três vezes no mesmo lugar
Por Anderson Figueira da Roza
Se por um instante você refletir sobre o peso de uma denúncia pelo Ministério Público, viabilizada pelo seu recebimento por um magistrado, facilmente você percebe o gigantismo do Estado contra uma pessoa.
Neste simples exercício, seguramente, de forma direta há a presença de agentes policiais e um delegado de polícia que investigaram um fato, um promotor de justiça (que vai arrolar alguns dos investigadores anteriores) e um magistrado chancelando o processo criminal. Logo, é fácil perceber que no início de cada processo a guerra é de um (advogado) contra todos, então, não seja ingênuo caindo num discurso sedutor e midiático, um acusado está em ampla desvantagem, imagine então se ele estiver preso preventivamente.
Feitas estas brevíssimas considerações iniciais, lembro-me de mais um caso marcante na minha carreira, onde as consequências de uma acusação grave ultrapassaram os limites do tolerável para uma família.
No ano de 2008, fui procurado por um senhor que era um empregado público federal. Este homem era pai de um jovem rapaz que foi residir em outro Estado ainda adolescente por conta da separação entre seus genitores. A forma que este senhor encontrou para amenizar a distância física com seu único filho de sangue até então, foi dedicar-se a ajudar crianças ou adolescentes que estavam em situação de pré-abandono por suas famílias.
Não é difícil de imaginar que sua casa tinha uma aglomeração de jovens, meninos e meninas, que acabavam lhe pedindo todo o tipo de ajuda. Além de parentes (sobrinhos), outras crianças da comunidade o adoravam, alguns deles até residiram algum tempo na sua casa.
Como já dito em outro artigo, vivemos numa sociedade hipócrita, e é muito mais fácil pensarmos e falarmos coisas ruins das pessoas do que pensarmos que elas são generosas e bondosas.
Desde 2007, este senhor se responsabilizou por dois meninos que eram irmãos, um de 14 (quatorze) anos e outro de 10 (dez) anos. Estes meninos não tinham pai nos respectivos registros civis e se afeiçoaram com este senhor por toda a atenção, carinho e cuidado que receberam, pois ele se responsabilizou nas escolas que ambos estudavam, e os tratava como seus filhos e por ironia do destino, em 2008 ele passou a se envolver afetivamente também com a mãe dos meninos.
Esta situação ao mesmo tempo em que poderia ter sido vista como algo nobre, gerou presunções de que ele era homossexual, ou que abusava das crianças perante seus vizinhos e/ou conhecidos.
A maldade das pessoas não tem limite, e por uma denúncia anônima de alguém da redondeza, um delegado solicitou um mandado de busca e apreensão na residência deste senhor. Da sua casa, foram levados álbuns de fotografias onde apareciam crianças ou adolescentes, pouco importando se era do seu filho natural, ou sobrinhos, ou até mesmo de alguns desses jovens que ele acabou ajudando com o tempo. Além disso, levados computadores e telefones.
Para quem já se deu conta, a suspeita era de pedofilia. A base da acusação eram os negativos antigos encontrados em um álbum de fotografias que tinham jovens na praia, de sunga ou biquíni. Foi indiciado, e denunciado nas sanções do artigo 240 do Estatuto da Criança e Adolescente[1].
A situação inicial era preocupante, porque junto com a denúncia houve representação pela prisão preventiva do acusado, que de plano foi indeferida, porém, o Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito e felizmente o Tribunal de Justiça manteve a decisão de primeiro grau e este senhor respondeu a acusação em liberdade.
Este processo não foi longo, durou pouco mais um ano. Na época, o Conselho da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul emitiu um Edital onde atribuía a competência das Varas da Infância e Juventude para julgarem os crimes cujas vítimas eram menores. Não tardou muito para este Edital perder sua eficácia e estes delitos passaram a ser julgados em Varas Criminais comuns.
Ao natural, a pena do crime imputado é grave, então a instrução foi bem realizada e pela dificuldade de se estabelecer um elo das fotos reveladas com a pornografia infantil, o próprio Ministério Público pediu a absolvição do acusado. Em memoriais, ratificamos o pedido do parquet e meu cliente foi absolvido, não havendo recurso, a sentença absolutória transitou em julgado em poucos dias, isto era final de 2009.
Enfim, parecia que as coisas ficariam em paz para meu cliente e sua família com a absolvição criminal. Porém, o segundo episódio da saga estava por vir e, três meses depois recebi nova visita deste senhor e sua esposa, mas por telefone já me anteciparam que estavam com um novo problema.
Mesmo pedindo a absolvição do meu cliente no processo criminal narrado anteriormente, cerca de um mês depois dos memoriais, o Ministério Público ingressa na vara da infância e juventude pleiteando a destituição do poder familiar da mãe dos meninos em relação aos seus dois filhos, tendo como fundamento que ela permitiu a convivência deles com o acusado, para tanto anexou ao processo de destituição do poder familiar, a cópia do processo criminal (que seu companheiro havia respondido) até o final da instrução, sem os memorias e a sem sentença absolutória.
Após outra instrução trabalhosa, foi julgada improcedente esta segunda ação, e mantido o poder familiar desta mãe em relação aos seus dois filhos. Como brinde, ao final deste processo, recebi a notícia de que o casal de clientes teria um novo filho e que este nasceria em janeiro de 2011. E assim ocorreu. Alegria total.
A trilogia se confirma em fevereiro de 2011, um mês após o nascimento do bebê, mais uma vez o Ministério Público ajuíza outra ação de destituição do poder familiar, desta vez para o casal, ele (o pai) para ser destituído do poder familiar do recém-nascido, ela (a mãe) dos seus três filhos. O motivo? O de sempre, a acusação de pedofilia lá do primeiro processo. Parece mentira ou loucura, mas não, foi isso que aconteceu.
Certos delitos não geram o direito de serem esquecidos aos acusados e familiares. A mesma mão que fez o carinho com o pedido de absolvição criminal deu três tapas nessa família ao longo dos anos. Os meninos mais velhos foram ouvidos nos três processos e sempre enalteceram os cuidados deste senhor. Ambos lhe reconhecem como pai, e lhe chamam de pai. Embora mais uma vez a sentença tenha sido improcedente, e o casal não tenha perdido o poder familiar das crianças, o processo serviu pelo menos para conceder a guarda e poder familiar dos dois meninos mais velhos que ele já cuidava.
Porém, mesmo com estas três vitórias relacionadas a esta família na minha carreira, o resultado prático foi terrível. Assustada e temerária com a última investida do Ministério Público contra si, na busca insana em destituí-la do poder familiar dos filhos, esta mãe não teve calma, paciência, nem estrutura emocional para aguentar estes embates com o poder público, e acabou cedendo ao mundo das drogas e do álcool e abandonou seus filhos e marido, e foi morar na rua.
Algumas vezes durante o último processo presenciei os esforços do marido e dos filhos mais velhos em resgatá-la, mas assim que recobrava os sentidos, ela fugia novamente. Atualmente o mais velho já é universitário, namora uma colega de faculdade, e o mais novo está prestes a prestar vestibular. Por sorte, este senhor existe na vida desses três garotos, os cria sem qualquer ajuda da mãe, que nem sequer sabem mais por onde ela anda, graças a ele estão se tornando cidadãos. Para eles, este senhor é o que sempre quis ser: PAI. Eu como advogado, fui apenas seu representante contra tudo e todos.
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[1] ECA art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cenas de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente.
Pena – reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.