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O reconhecimento de pessoas no processo penal

O reconhecimento de pessoas no processo penal

É de notório saber pelos advogados atuantes na defesa criminal que à prova testemunhal e ao reconhecimento de pessoas no processo criminal é dada grande valoração pelos julgadores quando se trata de fundamentação da sentença penal condenatória.

Todavia, o artigo 226 do Código de Processo Penal, que trata da formalidade do reconhecimento de pessoas na persecução penal, é tratado pelo judiciário sem a força normativa que se espera, tal como se tratasse de rol meramente exemplificativo.

Vejamos o entendimento do STJ extraído do julgamento do HC 443.769/SP em 12/06/2018:

É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que é legítimo o reconhecimento pessoal ainda quando realizado de modo diverso do previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, servindo o paradigma legal como mera recomendação. (STJ – HC 443769 / SP 2018/0076208-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER (1109), Data do Julgamento: 12/06/2018, Data da Publicação: 15/06/2018, T5 – QUINTA TURMA)

Não seria trágico se o “modo diverso” não representasse desvirtuar a regra de formalidade no procedimento penal, ou seja, o responsável pelo procedimento de reconhecimento de pessoas procederá de maneira discricionária. Portanto, o paradigma legal do dispositivo que deveria ser impositivo a fim de orientar a procedibilidade no reconhecimento de pessoas não se tornou apenas mera recomendação mas, sim, um dispositivo ignorado, quase como se sequer existisse.

Mas, qual a diferença entre se realizar o reconhecimento de pessoas nos parâmetros do artigo 226 do Código de Processo Penal e de se proceder de forma diversa como o STJ autoriza? Toda! Mais precisamente no resultado que este reconhecimento feito de forma inadequada acarretará ao processo penal.

Por ser o reconhecimento de pessoas utilizado como indício de autoria na ação penal e a palavra da vítima/testemunha ser recepcionada com grande valoração da prova, pode ser utilizada, alguns vezes até de forma solitária, para embasar a fundamentação de uma condenação criminal.

Além de observar a metodologia utilizada no procedimento de reconhecimento de pessoas, também se faz necessário estabelecer quais são os critérios técnicos para determinar a validade do reconhecimento e a confiabilidade daquele apontamento, baseando-se em estudos na área de psicologia sobre a falha da memória humana.

A mente humana pode apresentar erros na memória, conhecidos como o “fenômeno das falsas memórias”. Além de possuir falhas nos momentos de adquirir e reter a memória,  uma recordação poderá ser sujeitada a diversas e sucessivas revisões e alterações, criando assim uma nova realidade. A memória humana não tem a precisão de reter inalterada uma imagem ou um acontecimento como uma máquina fotográfica e filmadora.

A falsificação de memórias é muito mais frequente do que se pensa, e muitas das coisas que pensamos serem recordações, costumam ser verdadeiras só em parte ou serem totalmente falsas. Enquanto “dormem” no cérebro, as memórias sofrem misturas, combinações e recombinações, até o ponto em que o que lembramos não é mais verdadeiro. (ÁVILA, 2012, p. 7170-7171).

É importante salientar que há grande dificuldade em distinguir falsas memórias das verdadeiras, isso porque as falsas memórias podem apresentar maior riqueza de detalhes e transmitir confiabilidade em razão disto.

Embora muito mais comum do que possamos imaginar, as falsas memórias no âmbito judicial, principalmente no processo penal, podem causar danos com sérias implicações nas provas judiciais baseadas na memória, sejam a prova testemunhal ou reconhecimento de pessoas,  gerando consequentes prisões e condenações ilegais em razão de falsos reconhecimentos.

Segundo o estudo da psicologia, essas falhas na memória humana no processo de reconhecimento de pessoas, podem manifestar através do desvio de atenção, distorções, existência de vieses cognitivos, interferência, sugestionabilidade e autoindução, decurso de tempo, a influência das emoções e o esquecimento.

Estas comprovações científicas agem com grande impacto no procedimento probatório do Direito Processual Penal brasileiro, tendo em vista que o uso das provas baseadas na confiança da memória são determinantes nas condenações penais. Ainda, a obtenção destas provas sem a formalidade devida daquele que as colhe, descuidando da técnica necessária à complexidade do ato, contamina o lastro probatório.

Diante de tantos elementos que possam gerar falsas memórias, estipular que a procedibilidade do paradigma legal é mera recomendação é, em primeiro momento, declarar descaso ao procedimento penal de obtenção da prova, para depois, hipervalorizar o resultado obtido, que é o testemunho e reconhecimento equivocado, culminando em uma decisão condenatória baseada em prova falível e gerando dano por vezes irreparável.

Não são poucas as vezes em que a palavra da testemunha ou o reconhecimento do suspeito aportam como única prova apta a elucidar o fato delituoso, principalmente naqueles casos que não há indícios materiais de prova. Nestes casos, as condenações são fundamentadas exclusivamente na prova oral e reconhecimento obtidos, na maioria das vezes, não seguindo a “mera recomendação” do artigo 226 do Código de Processo Penal.

Segundo dados do Innocence Project Estados Unidos, os reconhecimentos pessoais equivocados são responsáveis por 69% dos casos em que é detectado erro judicial, comprovado mediante prova de DNA. O projeto vem obtendo a revisão de condenações indevidas com posterior declaração de inocência do condenado.

Há procedimentos de determinação do autor do crime que, se aplicados de maneira correta, têm o condão de dirimir erros na identificação do suspeito. Dentre estes, tem-se a técnica conhecida como line up, onde o acusado é colocado lado a lado com outros indivíduos para que se proceda ao reconhecimento, conjuntamente com a técnica do live line up, em que se os sujeitos colocados devem ter as características físicas semelhantes. Nesse método, a chance de se obter um reconhecimento mais preciso aumenta.

A metodologia e técnicas utilizadas para realizar o reconhecimento dos possíveis suspeitos podem conduzir a erros que irão se estender por toda a persecução penal, tendo em vista que, a má técnica eventualmente empregada nessa etapa tem o condão de dar início às investigações com um suspeito equivocado, deixando evidente a fragilidade desta prova.

Desta forma, técnicas como o mug shot, que consiste na fotografia tirada do acusado no momento de sua prisão e o show up, que consiste na exposição presencial de um único suspeito para reconhecimento, não devem ser consideradas legítimas pelo judiciário por sugestionar à memória do reconhecedor que aquele indivíduo é o que deve ser indicado, em razão dos elementos demonstrados referente às falhas da memória

Além das falsas memórias, ainda se lida com os estereótipos culturais relacionados a aspectos como classe social, faixa etária e componentes estéticos, evidenciando o caráter seletivo do Direito Penal brasileiro quanto àqueles considerados inferiores pela coletividade servindo, também, de parâmetro para o sugestionamento mental no apontamento da autoria delitiva.

Apesar das comprovações dessas falhas, mantém-se pelo judiciário a inobservância (entenda-se descaso) com os parâmetros procedimentais do reconhecimento de pessoas trazido pelo art. 226 do Código de Processo Penal, “fechando os olhos” para os impactos e danos causados pela produção das referidas provas a qualquer modo.

Manter o entendimento sobre o reconhecimento de pessoas conforme os parâmetros do HC 443.769/SP, é violar a segurança jurídica e escancarar a fragilidade de um sistema penal que, aparentemente, visa somente o apontamento de um culpado a ser responsabilizado pelos fatos delituosos que são levados ao judiciário. Aparentemente o judiciário é incapaz de questionar um procedimento falível dos servidores da segurança pública ou judiciários, ainda que sob pena de convalidar um erro proferindo sentenças condenatórias contra um suspeito incorretamente reconhecido como autor do delito.

Assim, é de suma importância que as diretrizes presentes na norma penal sejam observadas e respeitadas, implementando técnicas e metodologia com base no estudo da psicologia forense, que vise diminuir e afastar os impactos das falhas de memória sob o reconhecimento de indivíduos suspeitos de cometimento de crimes, a fim de frear as injustiças cometidas pela justiça penal brasileira.


REFERÊNCIAS

ÁVILA, Gustavo Noronha de, GAUER, Gabriel José Chittó, FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões Pires. “Falsas” Memórias E Processo Penal: (Re)Discutindo o Papel da Testemunha. RIDB, Ano 1 (2012), n. 12, p. 7170-7171.

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Adriana Mora Duarte

Advogada criminalista, pós-graduanda em Ciências Criminais pela Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais (ESAMG).

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