Artigos

O sentido do sangue: símbolo, forma e mito


Por André Peixoto de Souza


O sangue ultrapassa seu próprio significado físico e atinge um significado simbólico, eidético e poético mais relacionado à alma e à essência dos seres.

Há dois milênios, pelo sangue fomos redimidos. O sangue renova permanentemente a fertilidade. O sangue é elemento de pacto (com amigos ou com deuses e demônios). Representa a imortalidade; seu fluxo contínuo consagra a infinitude. Capacita, também, algum entendimento sobre as emoções humanas, a essência da vida, o afeto, a proximidade físico-química: amor, paixão, desejo, domínio, violência, morticínio, extinção, fim.

Na psicanálise o sangue se conecta ora ao tormento, ora à salvação. Freud antecipou, há mais de século, que possuímos na mente um lado obscuro, onde se concentram nossos medos, iras, desejos reprimidos, escondidos e proibidos. Pela interpretação dos sonhos esses dados – essas intimidades mais secretas – podem ser acessados, e o sangue (no sonho) conduz ao “reconhecimento”, que é o último estágio da constituição do sujeito.

Esse conjunto de significados pode ser sumulado em palavras-chave: morte, sacrifício, guerra, poder, paixão.

Na anatomia, o sangue é um fluido que circula pelo corpo, do coração às extremidades, durante toda a vida. Ou seja: enquanto há vida, há sangue. Cessada a vida, cessa a circulação sanguínea e coagula (e apodrece) o sangue.

Mas não precisamos tanto de anatomia ou hematologia para compreender esse simbolismo. Suas ocorrências aparecem nas guerras, nos conflitos, nas calamidades, nas epidemias. Seus significados estão presentes na história, na antropologia, na mitologia, nas religiões.

No senso comum o sangue se liga diretamente à vida (vida da alma, óleo do corpo), mas o seu simbolismo também atinge – senão mais profundamente – a morte.

O Gênesis constitui milenarmente a nossa cultura. A tradição judaico-cristã está inegavelmente impregnada no sujeito ocidental, e a totalidade de suas categorias se insere na nossa vivência e no nosso cotidiano.

A faca de Abrão é a prova eterna da fé irrestrita em Deus criador de todas as coisas, que segura a mão do pai no preciso instante de morticínio do filho. Aqui não houve sangue. Mas no pacto com Noé, Deus dá uma pista quanto ao significado do sangue no corpo: é a sua alma! (Somente a carne com a sua alma – seu sangue – não deveis comer. Gn 9, 4). E Deus proclama a condenação do homicídio pela simbologia do sangue: Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue… Gn 9, 6.

É evidente que a metáfora “derramar o sangue do homem” se refere a tirar uma vida humana: matar. Mesmo que o morticínio não revele… sangue! (assassinato por afogamento, asfixia etc.). Nesse sentido, o animal “com sangue” (alma) que não se deve comer, é o animal… vivo! Essa é a melhor hermenêutica.

Seja como for, é importante perceber que a alma, numa antiguidade anterior ao sentido socrático ou mesmo cristão de alma, guardava sinonímia com o sangue. E assim se apresenta a ideia de sangue como essência ou condição da vida: a vida da alma.

Também não é difícil encontrar nas explicações históricas que muitos povos arcaicos comiam animais ainda vivos, e que essa prática, a todo instante, revelava a transmissão de doenças. A diretriz divina, portanto e afinal, é uma questão de saúde pública!

(O encerramento do pacto conduz à fertilidade e à perpetuação da humanidade: sede fecundos e tornai-vos muitos… Gn 9, 7).

Sentidos físicos. O cheiro de sangue é peculiar, mas, como o vinho, pode-se identificar odores e aromas. O típico odor do sangue é o ferro – ou ferrugem, componente habitual na hemoglobina. Aliás, é precisamente o ferro que lhe dá cor (vermelha).

O sangue coagulado (quando é, por exemplo, exposto ao ar – no caso de qualquer hemorragia, como a decorrente de lesão ou homicídio por instrumentos perfuro-cortantes), no entanto, exala um odor mais forte, até mesmo fétido e enjoativo.

Dentro do corpo, o sangue varia de 35 a 38 graus centígrados, costumando ser “morno” ao tato imediatamente externo.

E quanto ao volume, no corpo humano, costuma o sangue corresponder a 7% do seu peso (uma pessoa de 80 Kg deve ter, em média, 6 L de sangue no corpo), sendo admissível viver com 80% ou, no mínimo, 70% desse volume. Menos do que isso (4 L nessa pessoa de 80 Kg, por exemplo) representa a sua morte. Antes da morte, no entanto, os efeitos da perda sanguínea são o aumento dos batimentos cardíacos, palidez, tontura, perda de concentração, perda de funções motoras etc.

Sangue e medo. Medo de sangue. Há nome certo pra isso, fácil de ser intuído: hematofobia. Esse medo se relaciona diretamente as nossas vulnerabilidades e fraquezas e, mais ainda, a um outro medo mais denso que os sentidos – temperatura, cor, volume – acarretam a partir da “visão” do sangue: a morte. Medo de sangue é, afinal, medo da morte!

Alma e energia, fogo e sol. Vida e morte. Bebida, infusão, remédio e contágio, crime. Batismo, sacrifício, purificação, profanação, penitência, comunhão e redenção. Mais que um fluido vital de preservação do corpo, o sangue – esse fluido enigmático – preserva a alma e a história.

andré2

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo