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O sigilo pessoal e as novas tecnologias


Por Dayane Fanti Tangerino


Defendi nesta semana minha dissertação de Mestrado, mais precisamente no dia 28/03/2016, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, em São Paulo, perante a banca examinadora composta pelos ilustríssimos Professores Vicente Greco Filho, Janaína Conceição Paschoal e João Daniel Rassi, cujo tema versava sobre teoria da imputação objetiva – autocolocação da vítima em risco – e crimes praticados por meio das novas tecnologias, sendo que, dentre as inúmeras e valiosas questões que me foram colocadas pelos Professores durante a arguição, uma delas, proposta pelo Professor Doutor João Daniel Rassi, a quem agradeço publicamente pela participação na banca e também pela pergunta, me pareceu bastante simples, mas tão capciosa quanto simples, a ponto de me incentivar a escrever a coluna de hoje sobre ela: há sigilo no ambiente digital?

Ora, de pronto a primeira ideia que nos vem à cabeça diante dessa pergunta é “sim, há sigilo no ambiente virtual”! Mas será?

Desde o momento em que ouvi a questão, tão simples e objetiva, mas, ao mesmo tempo, tão complexa e perturbadora, venho me questionando sobre suas possíveis respostas, sendo que hoje pretendo compartilhar com o leitor as minhas primeiras impressões sobre ela, servindo esta coluna como um princípio para a construção de uma ideia que espero seja elaborada com a participação de todos.

Sigilo…o que é o sigilo? Sigilo e intimidade são sinônimos? E a privacidade… tem alguma relação com o sigilo? Privacidade e sigilo são partes de um mesmo todo? Como relacionar estas figuras? São tais figuras bens jurídicos protegidos pelo direito e, mais precisamente, pelo Direito Penal? O sigilo existe no ambiente virtual? Se sim, é protegido penalmente? Enfim… as perguntas são inúmeras e as respostas também podem ser construídas de múltiplas formas.

O iminente Professor Paulo José da Costa Júnior em sua obra O Direito de Estar Só aborda de forma brilhante boa parte das questões acima postas, tendo sido, sua morte, uma imensurável perda ao mundo jurídico, mas, mais precisamente, ao estudo da privacidade, da intimidade e do sigilo. Nenhum outro autor debruçou-se com tanto afinco e paixão sobre o tema, pelo que sua obra merece e precisa ser considerada quando o assunto é sigilo.

Para o Professor Paulo José, a vida privada compõe-se de três esferas: privacidade, intimidade e segredo (sigilo), entendido a esfera do segredo como aquele ponto mais íntimo e secreto do ser humano, aquilo que, fazendo parte da essência da pessoa, vista pelo viés da dignidade humana, não pode ser invadido, menos ainda revelado ou divulgado.

Sabemos que a Lei nº 12.737/12 veio acrescentar ao Código Penal, dispositivos legais que tipificam delitos cibernéticos buscando suprir uma lacuna legislativa que permitia a impunidade das condutas indesejadas praticadas tanto no ambiente virtual quanto no físico em relação à proteção de dados e informações pessoais (artigos 154-A), restando evidente que o bem jurídico protegido por este novo tipo penal, do ponto de vista legislativo – mens legis – é o sigilo pessoal, visto como parte da liberdade individual.

Assim, portanto, do ponto de vista normativo podemos responder afirmativamente à pergunta formulada, pois há previsão de proteção ao sigilo no ambiente digital. Mas e na prática, como isso ocorre, especialmente quando lidamos com ações em meio web?

Presenciamos, recentemente, – e de forma reiterada – autorizações judiciais para quebra de sigilo telefônico e de dados para fins de instrução processual penal ou investigação criminal – o que até este ponto é constitucionalmente admitido –, mas vemos também a divulgação dos dados obtidos na interceptação realizada, o que nos faz pensar que, não obstante haja determinação constitucional para que os dados obtidos em decorrência da violação do sigilo, judicialmente autorizada, tenham destinação específica – instrução processual penal ou investigação criminal –, infringe-se esta determinação divulgando os dados obtidos sob o manto do princípio da relatividade dos direitos e garantias e em nome de um subjetivo e pouco claro interesse público.

Também em artigo anterior já demonstramos, por meio de superficial pesquisa jurisprudencial, que a intimidade, a privacidade e mesmo o sigilo são diariamente violados, invadidos e divulgados pelo próprio Estado que deveria ser seu mais ferrenho defensor.

Pensando nisso é que, cada vez mais, pugno pela ideia de revitalização do papel da vítima e pela efetiva incorporação à dogmática e à prática penal dos princípios da autonomia da vítima e da autorresponsabilidade, como pressupostos para o livre desenvolvimento da personalidade, entendidos numa concepção vitimológica e vitimodogmática que propaga a concepção de pessoa (e ai estaria também a vítima) como ser humano autônomo, livre, responsável e informado, dotado de capacidade, vontade e inteligência.

Ao Estado, neste contexto, restaria a proteção dos bens jurídicos coletivos e daqueles que não podem ser protegidos por seu próprio titular, seja por qual motivo for, pois sendo a vida privada o seio sagrado do sigilo pessoal, somente seu próprio titular, neste atual sistema de coisas, teria, de fato, interesse em protegê-lo.

Entendo que tal postura pode parecer pessimista e mesmo retrógrada, chegando alguns a afirmar que se estaria retrocedendo ao contexto da vingança privada ao se retirar da esfera de proteção do Estado determinados bens jurídicos e entregar tal proteção à responsabilidade do indivíduo. Entendo e respeito as críticas e tento, verdadeiramente, compreendê-las e aceitá-las, mas ainda não me convenci de que é mais seguro deixar nas mãos do violador – e só dele – a proteção da coisa que pode ser violada; coisa esta de essencial relevância ao ser humano em seu aspecto existencial como pessoa dentro de um Estado Social e Democrático de Direito.

Nessas poucas linhas, portanto, planto o primeiro esboço de ideia de que o sigilo existe no ambiente web ou nas relações perpetradas por meio das novas tecnologias e possui, inclusive, tutela constitucional e penal, em especial no bojo do artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal e da Lei nº 12.737/12, devendo, portanto, ser respeitado e protegido de violações e divulgações não autorizadas por seu titular, cabendo, entretanto, a cada dia mais, no âmago de uma sociedade de risco como a que presenciamos atualmente, elevar-se e revitalizar-se o papel da vítima como titular do bem jurídico, a fim de lhe permitir uma maior ingerência na proteção de seus bens e direitos, pois, como sabemos, a sociedade e o próprio sistema jurídico é pendular, movendo-se ora para frente, ao futuro, progredindo, ora para trás, ao passado, retrocedendo; se estamos em um sistema democrático e social de direitos, devemos buscar conquistar e cristalizar, enraizar garantias, pois se o próximo movimento do pêndulo social e jurídico ocorrer para trás, só nos restará o abrigo da nossa própria consciência e do nosso sigilo pessoal, pois somente escapará da fúria violadora a bens do ser humano como cidadão aquilo que ele puder por si mesmo e com seus próprios recursos proteger e preservar.

Continuemos a discutir e a abrir linhas de reflexão sobre este tema nas próximas oportunidades. Por enquanto, militemos e trabalhemos para que os bons ventos da justiça e da solidariedade empurrem o pendulo da vida para frente!


REFERÊNCIAS

COSTA JUNIOR, Paulo José da. O Direito de Estar Só – tutela penal da intimidade, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2007.

_Colunistas-Dayane

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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