O silêncio dos (presumidos) inocentes
Por Felipe Faoro Bertoni
Prezados leitores, a presente digressão foi escrita a quatro mãos e contou com o relevante apoio e a participação do colega Diogo Machado de Carvalho, sempre fonte de inspiração.
O costumeiro significado atribuído ao silêncio é dotado de uma conotação eminentemente negativa: é o nada comunicativo, o vazio do discurso. Diante da herança do pensamento moderno cartesiano, crê-se na primazia da palavra (e do ato) sobre o silêncio, defende-se que o não dito (e o não feito) está atrelado ao irracional e, dessa forma, despido de qualquer linguagem. Nas palavras de Eni Orlandi, “para nosso contexto histórico-social, um homem em silêncio é um homem sem sentido. [Então ele] Atulha o espaço de sons e cria a ideia de silêncio como vazio, como falta” (ORLANDI, 1997, p. 34). Outrossim, na sociedade “just do it” (conforme slogan de famosa empresa calçadista multinacional) – tão acostumada com o incessante movimento dos corpos e das palavras – o não fazer é praticamente uma heresia. Em tempos de incontroláveis ruídos, o pecado moderno é o comunicar mal; ainda mais reprovável, mais imperdoável, é permanecer calado.
Atrelado a tudo isso, o (autoritário) discurso processual penal adota o reducionismo do vazio e, com uma criatividade inquisitória, formula a doutrina do silêncio culpável (KENNY, 2011, p. 31)[1]. Subversivamente, o dispositivo inquisitório apresenta uma nova (e correcionalista) perspectiva. Como aponta Franco Cordero, o “bom” processo penal se torna uma atividade terapêutica; a pena é vista como um remédio (ressocialização, reeducação); “queira ou não é necessário que o imputado coopere” (CORDERO, 1986, p. 32). Logo, numa vã tentativa de comprovar a sua inocência, o sujeito é obrigado a fazer e falar, tudo em prol da revelação da “verdade” do crime. No atuar da Máquina Penal não há espaço para qualquer silêncio. Assim, kafkianamente, é dever do imputado cooperar com o Tribunal (inclusive em desproveito próprio), até porque “a culpa é sempre indubitável” (KAFKA, 1995, p. 41). O silêncio – longe de ser reconhecido como um direito constitucional e convencional – é entendido apenas em sua (reducionista) feição negativa, ou seja, como um nada que transparece a aquiescência do sujeito com a imputação formulada. Como preceitua o artigo 198 do Código de Processo Penal, “o silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”.
Entretanto, nas mais variadas facetas – seja na forma de silere (falta de movimento físico no mundo exterior), seja no modo de tacere (ausência de palavra relacionada a alguém) -, o silêncio é uma conquista democrática garantida a todos os imputados em um processo penal (dito) democrático. Em seu complexo âmago, o silêncio – garantido pelo axioma continental do nemo tenetur se detegere – exprime uma multiplicidade de sentidos e significações. Destarte, não apenas limitado a um simplório aspecto negativo, o silêncio ostenta um nítido caráter positivo, sendo considerado o elemento fundante do discurso (de defesa). “A linguagem é contínua, palavra e silêncio que, sem interrompê-la, torna-a possível” (SCIACCA, 1967, p. 32). Como antítese à (excessiva) linguagem inquisitória do processo penal, o silêncio fala.[2] O silêncio se apresenta como uma forma organizada de recusa em conceder ao outro a mínima palavra que pudesse, involuntariamente, legitimar os seus desígnios (LE BRETON, 1997, p. 84). Nas palavras de Mia Couto, o silêncio (processual) se apresenta como o último ato de resistência: “ao menos, lhe restasse essa possibilidade de recusa: não falar quando os outros pediam” (COUTO, 2005, 138).
Portanto, uma (re)leitura do princípio do nemo tenetur se detegere resplandece que o silêncio (defesa pessoal omissiva) não pode ser tido como negativo, tampouco gerador de qualquer presunção de culpabilidade. Como lembra Carlos Drummond de Andrade, no silêncio há dialogo; no silêncio há, sobretudo, defesa:
Escolhe teu diálogo
e tua melhor palavra
ou teu melhor silêncio
Mesmo no silêncio e com o silêncio
Dialogamos (ANDRADE, 1978, p. 99).
Em que pese a resistência em reconhecer e empregar vigência material a referido princípio, há na jurisprudência expressões democráticas alcançando concretude ao postulado do direito ao silêncio. Como exemplo, cita-se precedente da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (apelação-crime nº 70053949764), ocasião em que o órgão fracionário entendeu inválido o exame de etilômetro realizado por cidadão que não foi advertido de que não era obrigado a se submeter ao procedimento. O acórdão publicado consignou que “do direito constitucional de permanecer calado decorre o direito de o imputado não produzir prova contra si mesmo, isto é, o nemo tenetur se detegere, garantia constitucional que atinge todas as pessoas sem qualquer diferenciação (…) isso posto, ausente a comprovação da cientificação do réu quanto ao seu direito de não produzir prova contra si próprio no momento da abordagem policial, inválida é a referida prova”.
Há luz, portanto. O julgado mencionado reflete amadurecimento das instituições no sentido de garantir concretamente aos sujeitos processados os direitos que lhe assistem, consistindo, assim, mais um passo na direção da jurisdição democrática.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. O constante diálogo. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Discurso de primavera e algumas sombras. 2. ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1978. p. 99.
BONFIM, Edilson Mougenot. No tribunal do Júri: A arte e o ofício da tribuna. Crimes emblemáticos, grandes julgamentos. São Paulo: Saraiva, 2000.
CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Roma: UTET, 1986.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 138.
KAFKA, Franz. O Veredicto e A Colônia Penal. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
KENNY, Colum. The Power of Silence: Silent comunication in day life. London: Karnac, 2011.
LE BRETON, David. Do silêncio. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1997.
SANT’ANNA. Affonso Romano de. A sedução da palavra. Brasília: Letraviva, 2000.
SCIACCA, Michele Federico. Silêncio e Palavra. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia UFRGS, 1967.
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[1] Para melhor exemplificar, segue “ensinamento” de Eugênio Mougenot Bonfim: “O comportamento dele, tranquilo, calmo, técnico seria normal em um inocente? É um comportamento normal? Ele pode até ter confiança no trabalho de seus advogados, mas acusado de um crime monstruoso desse, dizendo-se inocente, se o fosse, não poderia reagir como tem reagido ao processo. O verdadeiro inocente convenceria-nos, mesmo antes da fala de seu defensor” (BONFIM, 2000, p. 95).
[2] “O silêncio também fala. É isto que se aprende durante as ditaduras. E, por outro lado, durante as democracias se aprende que o discurso nem sempre diz” (SANT’ANNA, 2000, p. 91).