Por Henrique Saibro
Intitulado por COUTINHO como o maior engenho jurídico que o mundo já conheceu (2011, p. 18) e notório por ser um sistema histórico que chancela o ativismo judicial, pode-se dizer que há uma verdadeira “colonização” do processo pelo agente decisório, em que o magistrado, simultaneamente, na sua dinâmica, coloniza e contamina, problematizando a paridade do feito, pois no momento da entrada de cena do destinatário dos investimentos probatórios, qualquer antecipação voluntarista romperia o equilíbrio processual (MARTINS, 2010, p. 25).
A máquina repressiva do sistema processual inquisitório, no seu início, caracterizou-se pela anulação do contraditório, ausência de ampla defesa e inversão da presunção de inocência, lecionando CARVALHO que a insuficiência de prova, que na verdade gera dubiedade, não bastaria para a absolvição; muito pelo contrário, pois qualquer indício (por mais inverossímil que fosse) equivalia à semiprova, que comportava juízo de semiculpabilidade e, em consequência, semicondenação (2010, p. 73)
A verdade real foi a fundamentação mais utilizada pelos inquisidores para legitimar o uso da tortura, estando intimamente ligada ao “interesse público” e com sistemas autoritários, que buscavam a “verdade” a qualquer custo, prevalecendo o velho ditado de que “os fins justificam os meios”.
LOPES JR. e GLOECKNER asseveram que sistemas com menos limites na atividade de busca, peculiar ao sistema inquisitório, levam a “verdades” com menor qualidade e com pior trato ao imputado – o útil é o verdadeiro (ACHUTTI, 2013, p. 14). Daí porque, na inquisição, inúmeras pessoas confessaram não só delitos não cometidos, mas, também, alguns impossíveis de serem realizados (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 314).
Nesse ponto destaca-se a genialidade conclusiva de CORDERO, ao chamar tal anomalia processual de primato dell’ipotesi sui fatti, como se as hipóteses prevalecessem sobre os fatos, incrementando COUTINHO que
“partindo de premissa falsa, não poucas vezes assentada em um lugar comum (do gato preto induz-se bruxaria; do funcionário da empresa o autor do sequestro; do mordomo o homicida, e assim por diante), chega-se a uma conclusão também falsa, transmudada em verdade construída” (apud COUTINHO, op. cit., p. 25).
Não diferente é a conclusão de Frei Nicolau Emérico – antigo inquisidor e jurista –, exposta na famosa obra “Manual dos Inquisidores”, de sua autoria e escrita em 1376, para quem “há homens fracos que, à primeira dor, confessam crimes que não cometeram, enquanto outros, teimosos e fortes, são capazes de suportar os maiores tormentos” (EMERICO apud SZNICK, 1998, p. 30).
Demais disso, o estilo inquisitório transparece uma verdadeira “sonda psíquica”. É dizer, o acusado é submetido a um ritmo bastante cansativo e flexível conforme a conveniência da investigação (em prol do Estado), havendo uma lavagem cerebral, sob o escopo de se chegar, sem prejuízo de consequências (novamente favorecendo o Estado), ao resultado previamente dado pela hipótese trabalhada pelo inquisidor (LOPES JR.; GLOECKNER, op. cit., p. 69). Ao tratar de inquisição estamos automaticamente tratando de chacina; ora moral, ora física.
Mas é importante destacar que as torturas e as execuções públicas não eram rechaçadas por toda a sociedade da época. Pelo contrário. Tais práticas apenas foram abolidas não porque a maioria o desejasse; e sim porque uma pequena minoria de reformadores de grande sensibilidade possuía bastante influência para bani-las.
REFERÊNCIAS
ACHUTTI, Christian Nedel Daniel. et. al. Org.: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal: e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Notadez Informação Ltda.: Sapucaia do Sul, 2006.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coordenador). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
EMÉRICO, Frei Nicolau apud SZNICK, Valdir. Tortura: Histórico; Evolução; Crime; Tipos e Espécies; Vítima Especial; Sequestro. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito Ltda, 1998.
LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.