O uso de algemas e a Súmula Vinculante nº 11 do STF
Por Ingrid Bays
A Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal, aprovada no ano de 2008, dispõe que “só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Diante da leitura do teor da referida súmula, é evidente que tal artefato deve ser utilizado em caráter excepcional e mediante justificação, o que deverá ocorrer perante a análise das peculiaridades de cada caso. A preocupação com o tema surgiu, aliás, principalmente em razão da manutenção do réu algemado durante sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri, o que evidentemente poderia acabar influenciando os jurados em sua decisão.
Ocorre que, como também é comum em diversas outras situações no âmbito do direito processual penal, apesar da clareza do teor da Súmula, ainda é adotado como prática o uso das algemas baseados em “fundamentos” absolutamente genéricos, que não analisam a situação exposta e sim todo um contexto que, por óbvio, facilita o “copia e cola” do Judiciário. A fim de exemplificar, colaciono o trecho de um termo de audiência ao qual obtive acesso, cujo processo já havia transitado em julgado:
“Embora sem alegação alguma da Defesa, devido às reiteradas anulações dos processos pelo Egrégio Tribunal de Justiça, importante referir que, com relação ao uso de algemas pelo réu e a Súmula 11 do STF, de efeito vinculante, a praxe deste juízo é passar as algemas para a frente, a fim de deixar o acusado mais confortável, sem, contudo, retirá-las, por razões de segurança. Saliente-se que não há como aferir qual réu é perigoso e qual não é, uma vez que os agentes das SUSEPE nunca recomendam sejam as algemas retiradas. A realidade do juízo de 1º grau é o contato direto com os delinquentes, em uma sala com dimensões reduzidas, sendo a distância entre aqueles e o Juiz, o Promotor, e mesmo o advogado, é diminuta. Nesta Comarca, no Foro novo, já houve tentativa de fuga e reação por parte dos réus ― em audiência e no Júri ―, que não eram considerados perigosos, os quais felizmente foram recapturados e/ou contidos. Desta forma, não pode este Magistrado, para assegurar o direito de um único indivíduo, colocar em risco a integridade física da coletividade de pessoas que participam do ato solene da audiência, razão pela qual as algemas serão mantidas.”
Da leitura depreende-se que, apesar de existir uma fundamentação, a mesma não é compatível com os termos da Súmula nº 11 do STF, uma vez que os argumentos trazidos possuem, aparentemente, o intuito de afirmar não ser possível o cumprimento daquilo que foi consolidado pela Suprema Corte. Decisões como essa não são raras, infelizmente. Deixa-se de analisar o caso em concreto para dar razão a ilações genéricas e baseadas em outros fatos e outros réus, o que nitidamente viola diversos preceitos constitucionais.
Com isso, acaba sendo necessário que os tribunais anulem tais atos (o que raramente ocorre), restando ao Supremo Tribunal Federal, novamente, o encargo de repetir aquilo que já foi sumulado, como em recentíssima decisão da 1ª Turma, na Reclamação nº 17754/SP:
“A leitura do ato impugnado revela a adoção de óptica linear pelo Órgão reclamado. Valeu-se de fundamentação genérica, desvinculada de dados concretos, para assentar a necessidade do uso das algemas, no que evidenciado o desrespeito ao contido no mencionado verbete vinculante. Atentem para a excepcionalidade da utilização do artefato. Pressupõe a resistência ou o fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física do envolvido ou de terceiros.(…) 2. Procede a irresignação. Consoante fiz ver ao deferir a medida acauteladora, a leitura do ato impugnado revela a adoção de óptica linear pelo Órgão reclamado, no que fundamentou o uso das algemas em razões genéricas. Daí se concluir pela inobservância do contido no Verbete Vinculante nº 11 da Súmula do Supremo. Confiram o texto: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. 3. Ante o quadro, julgo procedente o pedido para declarar a nulidade do Processo nº 0002053-95.2014.8.26.0637 a partir da audiência de apresentação realizada, em 30 de abril de 2014, perante o Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Tupã/SP.”
A Súmula Vinculante nº 11 gerou polêmica desde o início, porém está em vigor e vale reforçar que o seu principal objetivo, ainda não compreendido na prática, é evitar o uso de algemas para a exposição pública do preso, a fim de coibir, também e por consequência, a violação de preceitos constitucionais, como os princípios da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana. Lamentavelmente, outra vez a exceção se torna regra.