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O vazio político: do culto ao herói ao populismo togado


Por Bruno Silveira Rigon


Esse cenário político é preocupante porque as massas não se sentem representadas e, historicamente, quando se abre esse vazio político quem costuma crescer no prestígio da população para ocupar o espaço que está aberto são os extremismos e alguns fanatismos. Podemos verificar isso na ascensão política da extrema direita na Europa, assim como nas prévias da disputa eleitoral nos Estados Unidos na América com Donald Trump. Nosso principal representante de extrema direita na política pode ser considerado o deputado Jair Bolsonaro. Esse movimento político trata-se de um populismo permeado por discursos de ódio, de lei e ordem, xenofobia, homofobia, machismo, defesa da “moral e dos bons costumes”, entre outros. O populismo, entretanto, não se encontra mais simplesmente no legislativo ou no executivo.

Em nosso país, há um culto à figura do herói salvador da nação. Getúlio Vargas já ocupou esse papel, assim como o próprio Lula e, mais além, o ex-Ministro Joaquim Barbosa quando do julgamento da AP 470 (famoso “mensalão”). Agora, quem ocupa esse lugar no imaginário social é o juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato. Vivemos hoje uma época que o populismo usa toga. Não é a toda que ele clama por apoio popular para suas decisões judiciais. Além disso, é possível perceber o messianismo que a figura do magistrado representa quando manifestantes vão às ruas protestar com camisetas cujo escrito é “In Moro We Trust”, uma evidente referência aos dizeres “In God We Trust” presentes nas notas de dólares. Ou seja, o juiz encarna o lugar do próprio Deus. É, portanto, o nosso messias.

O problema disso é que, se o magistrado é Deus, os acusados são o demônio e seus advogados, consequentemente, não passam de advogados do diabo. Existe na sociedade brasileira uma visão muito forte de que o advogado tenta atrapalhar a realização da justiça. Ele é um verdadeiro obstáculo à punição dos (presumidos) culpados. Esse imaginário social concebe o advogado enquanto um empecilho para o correto funcionamento do sistema de justiça criminal. Como consequência desse senso comum tem-se a transferência dessa mentalidade para parte do imaginário dos juristas (sobretudo, nos órgãos estatais responsáveis pelo controle do crime: polícias, ministério público e poder judiciário). O sintoma disso? A interceptação telefônica de 25 advogados determinada na Operação Lava Jato, o que pode ser considerado como um dos maiores atentados às prerrogativas da advocacia no período democrático.

No entanto, não podemos tratar o juiz Sérgio Moro como um bode expiatório. É preciso levar em consideração a cultura institucional na qual o magistrado encontra-se inserido, assim como no contexto social em que vivemos. Em primeiro lugar, é possível verificar uma cultura autoritária no habitus institucional do poder judiciário brasileiro que passa desde uma cultura jurídica bacharelesca (ADORNO, 1988) até ao papel desempenhado na ditadura civil-militar (PEREIRA, 2010). Enquanto o Estado brasileiro e suas instituições se proclamam democráticos em seus discursos, observa-se na prática o inverso, ou seja, uma atuação institucional estatal marcadamente autoritária, o que leva Débora Regina PASTINA (2009, p. 30) a afirmar que “democracia, para nós, tem servido apenas como retórica”.

Na justiça criminal os ideais democráticos são deixados de lado e entram em cena mecanismos autoritários, violentos e desumanos, para dizer o mínimo. O que ocorre, na verdade, é que a repressão penal operada contra a população mais pobre nos permite sustentar que as periferiais e as prisões em nossa realidade marginal acabam por configurar verdadeiros espaços de exceção (FRANÇA e RIGON; 2014, p. 197-218), para utilizar a terminologia do filósofo italiano Giorgio AGAMBEN (2010). Isso ocorre historicamente contra os estratos sociais mais vulneráveis, mas agora, ao que parece, a sistemática violação de direitos e garantias fundamentais está sendo estendida aos grupos que não eram clientes preferenciais do sistema penal: os criminosos de colarinho branco.

Com o estudo da crítica criminológica, sabemos que o sistema penal opera de forma seletiva, sempre selecionando os grupos mais vulneráveis, e que somente excepcionalmente uma pessoa não atingida pelo poder punitivo é criminalizada: quando perde uma luta de poder contra outra pessoa mais poderosa, que é a chamada de criminalização devido à falta de cobertura (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2006, p. 48-50). A tese de Walter Benjamin parecia explicar o fenômeno punitivo perfeitamente: “A tradição dos oprimidos ensina-nos que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é a regra” (2012). Agora a constatação de Eliane Brum, ao comentar a condução coercitiva do ex-presidente Lula, se mostra ainda mais adequada:

A imagem de Lula preso, para o Brasil inteiro, não mostra que a lei vale inclusive para ícones populares e ex-presidentes. Mas que a lei também não vale para ícones populares e ex-presidentes. Que o abuso e a violação de direitos, cuja maior representação são os milhares de presos sem julgamento atirados em penitenciárias medievais, assim como os negros humilhados pelas polícias nas periferias, são a regra para todos – ou quase todos (2016).

Se nos séculos passados houve um predomínio do poder legislativo e, depois, do poder executivo agora parece que há uma prevalência do poder judiciário em nossas sociedades, o que é capaz de caracterizar um autêntico governo dos juízes. Vivemos uma era que se diferencia pelo ativismo e pela discricionariedade judicial, em que vigora um “estado de exceção hermenêutico” (STRECK, 2014 e 2011). Os limites à interpretação, inclusive semânticos, são ignorados. A interpretação judicial encara as formas legais como meros “conselhos normativos” ao magistrado (GLOECKNER, 2015), ignorando que, em matéria penal, as formas são as garantias que asseguram o cumprimento de determinado princípio (constitucional) ou de um conjunto deles (BINDER, 2003, p. 42).

Nesse estado de emergência interpretativa, Lenio Streck, ao comentar a Operação Lava Jato, realmente está certo quando diz que “existem juristas mais moristas que o próprio Moro” (2016). O próprio magistrado admitiu que a interceptação da conversa entre Lula e Dilma foi “irregular”, mas justificou sua necessidade em virtude do interesse público. Irregular não passa, pois, de um eufemismo para ilegal. Ademais, é importante destacar que justificativas para a violação de direitos fundamentais individuais sempre foram utilizadas pelos mais diversos tipos de autoritarismos com base na retórica que invoca o interesse público, o bem comum, o interesse coletivo, o interesse nacional, etc[1].

Não podemos, entretanto, negar que a filosofia política base das teorias da democracia desde os gregos até ao constitucionalismo contemporâneo está fundada na ideia de bem comum. Contudo, é preciso indagar o que é este bem comum? Segundo Foucault, o bem comum é, essencialmente, a obediência e a submissão à lei do soberano (seja ele terreno ou divino). A finalidade da soberania é circular, pois o “bem é a obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam a ela” (FOUCAULT, p. 167).

Se os juízes assumem o status jurídico-político de soberanos com um poder ilimitado de interpretação e, portanto, de decisão, suspendendo os direitos fundamentais individuais inerentes ao direito penal e processual penal, não estamos mais numa relação entre o cidadão e o Estado, mas sim entre a vida nua e o poder soberano. Abre-se, assim, uma zona de indiferença entre as questões jurídicas e as questões de fato, na qual a vida (nua) é abandonada pelo direito. Não se trata mais de uma relação de direito, mas de uma relação de exceção.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

BINDER, Alberto M. O Descumprimento das Formas Processuais: Elementos Para uma Crítica da Teoria Unitária das Nulidades no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder: O Bacharelismo Liberal na Política Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Anticorrupção ou corruptibilidade das formas? Boletim IBCCRIM, nº. 277, dez. 2015.

PASTANA, Debora Regina. Justiça Penal no Brasil no Brasil Contemporâneo: Discurso Democrático, Prática Autoritária. São Paulo: UNESP, 2009.

PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.


NOTAS

[1] Nesse sentido, Emerson Affonso da Costa Moura constatou em sua pesquisa histórica acerca da noção de interesse público no direito brasileiro que: “o interesse público atua como instrumento ideológico de legitimação da ordem estatal e da autoridade pública” e seguiu afirmando que “o conceito de interesse público antes de garantir a demarcação independente das necessidades da própria sociedade, delimitou a assimilação, dependência e repetição das estruturas políticas, administrativas e sociais do Estado Português, resultou na apropriação de tal expressão como forma de legitimar o patrimonialismo e o autoritarismo sob o manto da Administração Pública” (2014, p. 85).

BrunoRigon

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