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A objetivização do elemento subjetivo: até quando?

A objetivização do elemento subjetivo: até quando? Com o avanço da tecnologia e a evolução das formas de se perpetrar atos ilícitos, dois interessantes tipos penais passaram a vigorar na lei especial n. 8069, de 1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): os artigos 240 e 241-B que foram introduzidos ao referido diploma legal – juntamente com alguns outros tipos penais – pela Lei 11.829, de 2008.

Dispõe o referido artigo 240 que “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente” enseja punição penal de “reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa” e, por sua vez, o artigo 241-B preceitua que será punido com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa aquele que “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.

Estudando o referido Estatuto e considerando que atualmente quase todos os cidadãos possuem um dispositivo informático capaz de gravar, filmar, armazenar, fotografar ou, de qualquer forma, registrar eventos e cenas da vida comum, ficamos a imaginar se e como estariam os Tribunais recebendo casos envolvendo tais tipos penais e nos colocamos a fazer uma busca pela jurisprudência do STJ a fim de verificar a incidência deste tipo penal ao casos a ele submetidos.

Com tal busca verificamos que, não obstante, a Lei que colocou em vigor tais tipos penais tenha aproximadamente 8 anos de existência, não são muitos os casos registrados na Corte tratando do tema, pelo que optamos por “pinçar” um deles para embasar nossa reflexão de hoje.

Dentre os recursos que versam sobre o tema, escolhemos o REsp 1.543.267-SC, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 03/12/2015 e publicado no DJe de 16/2/2016 e no Informativo n. 577 do STJ, contando com a seguinte ementa:

DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E PENAL. TIPIFICAÇÃO DAS CONDUTAS DE FOTOGRAFAR CENA PORNOGRÁFICA E ARMAZENAR FOTOGRAFIAS DE CONTEÚDO PORNOGRÁFICO ENVOLVENDO CRIANÇA OU ADOLESCENTE.

Referido processo girou em torno do fato de que o acusado teria fotografado cena e armazenado a fotografia de adolescente em poses nitidamente sensuais, com enfoque em seus órgãos genitais, ainda que cobertos por peças de roupas.

Na visão da Relatora, “incontroversa a finalidade sexual e libidinosa do ato”, sendo que tais condutas adequar-se-iam, respectivamente, aos tipos do art. 240 e 241-B do ECA.

Ainda para a Ministra do STJ, “o artigo 241-E do ECA trouxe norma penal explicativa – porém não completa – que contribui para a interpretação dos tipos penais abertos criados pela Lei n. 11.829/2008”. Nesse sentido, para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.

E nas palavras da Ministra Relatora, “a definição de material pornográfico acrescentada por esse dispositivo legal não restringe a abrangência do termo pornografia infanto-juvenil e, por conseguinte, deve ser interpretada com vistas à proteção da criança e do adolescente em condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º do ECA). Desse modo, o conceito de pornografia infanto-juvenil pode abarcar hipóteses em que não haja a exibição explícita do órgão sexual da criança e do adolescente”, destacando, ainda que, nesse sentido, há entendimento doutrinário.

Finaliza o julgamento entendendo que “configuram os crimes dos artigos 240 e 241-B do ECA quando subsiste incontroversa a finalidade sexual e libidinosa de fotografias produzidas e armazenadas pelo agente, com enfoque nos órgãos genitais de adolescente – ainda que cobertos por peças de roupas -, e de poses nitidamente sensuais, em que explorada sua sexualidade com conotação obscena e pornográfica”.

O que nos chama a atenção na linha de raciocínio utilizado pela julgadora para analisar o caso é que a abertura interpretativa proporcionada pela redação do referido artigo 241-E é empregada de forma a se objetivizar o elemento subjetivo, o que, na nossa visão ocorre de forma “viciada”. Explico.

Como se sabe, os elementos objetivos do tipo penal referem-se aos atos, e, na maioria dos crimes, à exteriorização da ação. Por outro lado, os elementos subjetivos do delito, demasiadamente mais complexos de serem explicitados que os primeiros, tratam da intenção do agente causador do mal injusto, ou seja, para identificá-los é necessário realizar uma análise psicológica da conduta do autor do fato, o qual está relacionado com o resultado pretendido. Na doutrina brasileira tem-se sedimentado que dois são os elementos subjetivos do tipo: o dolo e a culpa.

Pois bem. Não obstante tenhamos posição diversa sobre a aceitação de que dolo e culpa compõe os elementos subjetivos do tipo penal, preferindo adotar a linha defendida por Ingeborg Puppe (2004) em sua obra A distinção entre dolo e culpa, trabalharemos com os critérios majoritários para facilitar o entendimento da crítica.

Ora, se utilizarmos a teoria da conduta, teremos basicamente três correntes que explicam o dolo, elemento que será nosso foco nesta análise, já que os crimes ora aqui enfatizados – artigos 240 e 241-B do ECA – não possuem a modalidade culposa de cometimento.

Assim, na visão finalista da conduta, a estrutura do dolo ou dolo natural nada mais é do que a vontade consciente de praticar a conduta criminosa; para os seguidores da corrente causalista, o dolo é considerado normativo, ou seja, além da vontade consciente de praticar a conduta criminosa, exige-se a consciência do agente de que ele está praticando uma ação ou omissão tipificada pela Lei e, por fim, no dolo axiológico, defendido por Miguel Reale, o dolo seria a vontade e a intenção de praticar a conduta criminosa, compreendendo o desvalor que a conduta representa.

Na linha da lei positivada, qual seja, o artigo 18, inciso I do Código Penal, o dolo se verifica “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”, podendo-se afirmar que o conceito adotado pelo Código Penal seria aquele relativo à teoria finalista que possuiria, então, dois elementos essenciais: cognitivo ou intelectual e volitivo.

O elemento cognitivo do dolo refere-se à consciência do executor do evento e determina que este conhecimento da prática da conduta típica deve ser atual, ou seja, no instante do cometimento do delito faz-se necessário o perfeito entendimento por parte do agente da conduta criminosa executada; no chamado elemento volitivo, é necessário se verificar a vontade do agente de praticar o fato típico almejando o resultado, e, existindo entre ambos, o nexo causal. Assim, para a ocorrência do dolo, necessário haver, além da existência da consciência (elemento cognitivo), a existência da vontade do agente (elemento volitivo) de praticar a conduta tipificada na Lei.

Desta resumidíssima explicação podemos concluir que o elemento subjetivo, por óbvio, é algo subjetivo, ou seja, que ocorre no espectro interno do agente, sendo que o papel do julgador, quando da análise do caso concreto sub judice se revela um trabalho bastante complexo, já que ele necessariamente precisará tornar objetivo um elemento naturalmente subjetivo, buscando, através de todos os outros elementos e circunstâncias objetivas e externas do crime apreender e revelar um fato que ocorreu somente na esfera mental do agente.

Todos hão de concordar que tal mister deve ser, no mínimo, inquietante e tormentoso, pois que, por muitas vezes, não há elementos externos aptos, capazes e concretos passíveis de engendrar tal revelação. E o Magistrado deverá, ainda assim, julgar.

Frente a isso muito se discute na doutrina exatamente sobre os tipos abertos, ou seja, aqueles tipos que além de já possuírem inferido em si o elemento subjetivo que lhe é inerente, também acabam por trazer ao julgador uma espécie de tipicidade subjetiva, ou seja, são tipos que devem ser interpretados e revelados pelo julgador no caso concreto, deixando-lhe, além do trabalho de objetivizar o elemento subjetivo – o que por si só já é bastante árduo – ainda interpretar, sob sua perspectiva, se o fato praticado pelo agente estaria de alguma forma insculpido no tipo sob análise, não se tratando de mera subsunção penal, mas sim de se “pensar como o agente”, ou seja, em tese, deveria o julgador se perguntar: “quando o agente praticou o fato X, ele sabia, inequivocamente, que tal fato poderia ser adequado ao tipo previsto no artigo Y?”. Vejam a complexidade do raciocínio, caros leitores!

Como saber, através de elementos externos e objetivos o que, interna e subjetivamente, pensou, entendeu, interpretou e imaginou o agente na situação concreta?

Essa sempre fora uma questão a mim muito tormentosa e que vejo revelada no julgado que hoje trago aos leitores, pois que, no entendimento da Magistrada o tipo penal sub judice seria um tipo aberto e, por isso, interpretável a partir de seu ponto de vista, sem levar em consideração como foi o pensamento do agente sobre a situação concreta. É corriqueira e assustadora a forma com que se faz tal “análise do elemento subjetivo” e, em alguns tipos específicos – aqueles ditos “abertos” – a própria análise da tipicidade. Por vezes o que se analisa é tão somente os elementos objetivos…e ponto!

Analisando “nosso” leading case, em primeiro grau de jurisdição, o Magistrado entendeu que não havia elementos objetivos suficientes para a condenação no tipo do artigo 241-B do ECA, absolvendo o agente; interposto recurso pelo MP, o Tribunal acolheu o apelo e condenou o acusado, dentre outros, ao tipo previsto no ECA, assim argumentando:

MATERIALIDADE DO FATO QUE MUITO NÃO SE PODE EXIGIR, EM RAZÃO DE NÃO DEIXAR VESTÍGIO. CONTATO FÍSICO DIRETO COMPROVADO. AUTORIA PACIFICADA. DECLARAÇÕES DA VÍTIMA FIRMES E COERENTES, CORROBORADOS PELA FALA DE SUA GENITORA E AVÓ MATERNA. VERSÃO DEFENSIVA ANÊMICA. CRIMES DESTE JAEZ NORMALMENTE COMETIDOS NA CLANDESTINIDADE. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO INAPLICÁVEL À ESPÉCIE. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA REFORMADA.

Da leitura do acórdão que traz em seu corpo os argumentos das instâncias inferiores, pode-se claramente observar que não há qualquer tipo de análise do elemento subjetivo, mas apenas inferências e suposições sobre tal elemento, sendo certo que até mesmo o elemento objetivo, por vezes, é relativizado e desqualificado para se proceder à condenação.

Em suma, é um tema instigante, mas também árduo e complexo, que merece toda a nossa atenção, já que, diariamente, inúmeras pessoas são julgadas em nosso País a partir desse critério: internalização pelo julgador, a partir de elementos externos e objetivos daquilo que o que agente, interna e subjetivamente, pensou, entendeu, interpretou e imaginou na situação concreta.


REFERÊNCIAS

PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad., introd., notas: Luís Greco. Barueri, SP: Manole, 2004.  objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização objetivização

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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