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Notas sobre o texto ‘O que acontece além do Oceano? Direito e Literatura na Europa’ (Parte 2)

Notas sobre o texto ‘O que acontece além do Oceano? Direito e Literatura na Europa’ (Parte 2)

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3 – A experiência Italiana do Diritto e Letteratura

A experiência do law and lit na Itália ao longo do século XIX espelha a tendência europeia à “americanização da pesquisa”, com um destaque para a identificação de uma vertente literária dos estudos, o que ajuda a identificar os caminhos que podem ser percorridos. Tais estudos começaram a crescer de maneira exponencial a partir de 1990, marcando também o “renascimento” do Diritto e Letteratura.

A partir de 2000, os juristas italianos “(…) buscam um espaço institucional para a matéria, dedicando-se ao fim mais ambicioso de contribuir para o crescimento da democracia, ao se preocuparem com a formação ética nas salas de aula acadêmicas (…)” (p. 13); enquanto os estudiosos da crítica literária e da linguagem também apresentam interesse pela aproximação entre o direito e a literatura.

(…) A questão é que as diversas experiências restam, ao longo do tempo, limitadas aos próprios âmbitos disciplinares, quase completamente distintas por objetivos cognitivos e metodologias, de tal maneira que se identificam, na Itália, duas histórias de Diritto e Letteratura que ainda encontram dificuldades de convergência. A essas duas histórias se agrega uma terceira – a mais atual –, em que se registra, felizmente, o surgimento do encontro entre juristas, literatos e cientistas do texto, que, mesmo ainda estando nos primeiros passos, já conta com importantes experiências, das quais tentaremos dar conta neste artigo, apesar dos limites da inevitável parcialidade de tal gênero de operações (p. 13).

3.1 – O renascimento no âmbito jurídico

O renascimento do law and lit no âmbito jurídico italiano começa dentro do âmbito da filosofia do direito e do estudo da história do direito medieval e contemporâneo. Sob influência dos justoricistas é instituído em 2005-2006 a primeira disciplina que traz a epígrafe Direito e Literatura na Itália.

No ano de 2007-2008 surge o curso de Law and Humanities abordando a interação entre o Direito e as artes, não apenas a literatura. O movimento de revitalização também ganhou raízes no direito privado, com o evento Teaching Law through the Looking Glass of Litearture organizado em 2006.

Na segunda década dos anos 2000 os cursos que exploram a relação entre direito e literatura começam a se multiplicar em universidades italianas, em diversas áreas do conhecimento, bem como com o crescimento de trabalhos e eventos acadêmicos que abordam essa intercessão.

Os temas abordados nesse renascimento variam conforme o interesse de cada pesquisador, mas mitologicamente há uma aproximação do “(…) Direito na Literatura, em que o direito, observado através da representação literária, tem restituída a complexidade que lhe é inerente e ao seu contexto, sendo, assim, colocado em questão (…)” (p. 15), com uma preferência por obras clássicas de literatura.

Em menor grau, há contribuições no campo do Direito como Literatura, onde “(…) encontramos certo desenvolvimento tanto no plano da análise da linguagem jurídica, com base nos aportes da crítica literária, proposta por estudiosos que consideram o direito essencialmente como uma construção linguística e que se interessam pelos problemas da hermenêutica ou estão envolvidos na análise comparada e no oneroso tema da tradução (…)” (p. 15) “(…) como também no plano da observação do direito como construção narrativa, conduzida principalmente por pesquisadores que têm uma formação de viés sociológico-jurídico (…)”(p. 16).

O texto trata algumas distinções clássicas do movimento Direito e Literatura como se fossem conhecimento comum, para uma elucidação vale a pena destacar que o Direito e Literatura pode ser dividido em três grupos distintos: (1) o Direito na Literatura (law-in-literature), que pretende utilizar obras literárias para discutir assuntos jurídicos; (2) o Narrativismo Jurídico (narrative jurisprudence), afirma que o Direito é apenas mais uma história que precisa ser interpretada, por isso as técnicas de contar histórias podem trazer grande contributo para o direito; e (3) o Direito como Literatura (law-as-literature) pressupõe que os textos jurídicos e textos literários são textos e, por isso, as técnicas de interpretação e crítica literária podem ser usados no direito, dos ramos do Direito e Literatura esse é o que menos se interessa por Literatura em si, possui mais apreço pela crítica literária (MINDA, 1995, p. 150 e 151; GODOY, 2011, p.12 a 17).

Todas essas áreas do direito e literatura possuem discussões que são interessantíssimas por si só. Por exemplo, (01) uma crítica comum à compreensão do law-as-literature é que os universos são inconciliáveis devido aos diferentes tipos de intenção interpretativa que ocorrem entre o Direito, que deseja limitar as possibilidades interpretativas para garantir a segurança jurídica, e a Literatura, que tem a intenção de ampliar as possibilidades interpretativas tornando o texto mais interessante, por sua vez os defensores do movimento respondem a essa crítica afirmando que a amplitude de possibilidades interpretativas que se alcançam com a forma literária de interpretar é útil para garantir elasticidade ao direito, servindo para encontrar soluções mais justas para situações mais específicas não idealizadas no momento de criação do dispositivo jurídico interpretado (SOARES, 2010, p. 119 a 121); (02) uma discussão interessante relacionada ao narrative jurisprudence é como os advogados devem usar habilidades específicas de contadores de histórias, omitindo e distorcendo fatos quando necessário, para influenciar o júri a tomar uma determinada posição e as consequências éticas para esse tipo de comportamento (MINDA, 1995, p. 154 e 155; SNEDAER, 1991, p. 152 e s.).

Essa classificação (law-as-lit; law-in-lit e narrative jurisprudence) é a mais comum usada no Brasil e adotada por grandes autores como François Ost (que teve seu Contar a Lei traduzido para o português) e Lênio Streck. Mas existem outras classificações possíveis.

Apenas como exemplo, Jane Baron divide o movimento em três ramos: humanist law-and-lit, que tem a intenção de utilizar a literatura para trazer uma vertente mais humana ao Direito, os hermeneutic law-and-lit, que guardam semelhanças com o law-as-literature, e os narrative law-and-lit que se interessam no impacto retórico da forma como as histórias são contadas no direito (BARON, 1999, p. 1064 e s.).

Voltando ao texto, dentro do campo do Law and Humanities a investida na Itália ainda é modesta, com o destaque para o uso pedagógico do Direito e Cinema nas universidades, sem um aprofundamento teórico e metodológico.

Vale destacar que “(…) nem sempre o grande entusiasmo é acompanhado do devido rigor metodológico. Além de não se prestar a necessária atenção em relação aos pesquisadores de outra vertente, a proliferação dos estudos não significou que tenha havido a suficiente reflexão acerca de termos mais gerais de Direito e Literatura. Disso resulta certa confusão, a começar pela definição da abordagem: referimos-nos a uma disciplina, a uma metodologia ou a um movimento? (…)” (p. 16).

3.2 – A experiência do Direito e Literatura no âmbito da teoria literária e das ciências do texto

Dentro da análise literária do law and lit italiano, vale destacar que em 1998 surgiu a disciplina Literatura e mundo judiciário na Universidade de Bologna, vinculada ao departamento de literatura comparada, com a intenção de estudar o “(…) avanço do estudo da estrutura narrativa e da teoria da personagem, graças à possibilidade de se observar o processo judicial, contado no texto literário, como contexto compositivo em que se destacam não apenas as histórias, mas também as ações dos atores (…)” (p. 17). Ainda no campo da análise literária, destaca “(…) o interesse em utilizar o direito como um indicador de caráter histórico-social para fins da reconstrução do contexto da obra e do seu autor (…)” (p. 17) e que “(…) As obras literárias proporcionam uma crítica profunda da lei e a observação da maneira como a lei confere dimensões fundamentais à existência humana individual e social (…)” (p. 18), onde ressalta os estudos de Claudio Magris que “(…) destaca a aversão da literatura à lei, como recusa da violência (ínsita à própria lei) e, ao mesmo tempo, reflexo da possibilidade do mal que está no homem, posto em xeque entre bem e mal, culpa e desejo de perdão, justiça e injustiça, permitindo-nos compreender a qualidade da sensibilidade que um literato pratica ao refletir sobre temas que são clássicos do pensamento jurídico” (p. 18).

Os estudos de crítica literária que bem poderiam ser identificados como de Direito e Literatura são, em última análise, aqueles que, de modo absolutamente autônomo, realizam há muito a análise da relação conflituosa entre literatura e poder, observada em histórias de denúncia, senão mais diretamente nos dispositivos de censura, e espontaneamente tendem a finalidades mais ambiciosas, de caráter social e político, que temos visto estar no DNA do Law and Literature Enterprise” (p. 18).

3.3 – O encontro entre juristas e literatos

Apesar da tendência dominante ainda ser aquela da separação entre os diversos âmbitos disciplinares, é importante destacar que, nesses últimos anos, tem se tornado forte a exigência de criar novas oportunidades de encontro e de trabalho entre juristas, literatos e cientistas do texto, resultando numa mudança que também promete o amadurecimento das problemáticas de caráter metodológico (p. 19).

Com a intenção de promover essa interação, nasce a Sociedade Italiana para o Direito e Literatura (Italian Society for Law and Literature – ISSL – junto ao Centro interdepartimentale di ricerca in Storia, Filosofia e Informatica del Diritto – CIRSFID –  da Universidade de Bologna).

(…) A ISLL nasce para promover os estudos em Direito e Literatura e Law and Humanities, criando uma rede de trabalho internacional e interdisciplinar (…) através da qual busca constituir um observatório privilegiado sobre os estudos na Europa e no resto do mundo, oferecer condições para uma relação com os expoentes do movimento americano e contribuir para a credibilidade desse objeto de estudo no ensino e na pesquisa universitários (…) (p. 19).

Vale destacar que “(…) a ISLL está, atualmente, promovendo a formação de grupos de pesquisa interdisciplinares sobre temas específicos, a fim de que o trabalho comum também possa veicular uma análise apropriada do método (…)” (p. 20).

É importante observar que a ISLL foi criada em 2008 por iniciativa de Enrico Pattaro, mas mudou sua estrutura de funcionamento em 2013 em grande parte sob influência de M. Paola Mittica, a autora do texto que foi publicado no original em 2014.

Entrando na discussão metodológica desenvolvida na Itália, se destacam 3 propostas:

(01) comum em seminários permanentes, trata-se de colocar em contato “(…)os participantes, graças às intervenções de conferencistas de formações diversas, com interpretações de textos significativos e pertinentes a temas jurídicos, estimulando, assim, a abertura ao diálogo interdisciplinar, além da sensibilidade cultural dos estudantes e daqueles que pertencem ao mundo das profissões jurídicas” (p. 20);

(02) tratando da interdiciplinariedade entre Direito e Linguagem há um interesse no estudo do italiano jurídico, onde “(…) A lente dos juristas examina os fatos da língua nos aspectos que são pertinentes às teorias gerais do direito, à interpretação e à aplicação das normas. A lente do linguista busca isolar nos textos jurídicos os traços que os caracterizam enquanto pertencentes à variedade de línguas distintas no tempo, na distribuição geográfica, no meio de atuação (escrito ou falado), nos registros; busca reconhecer os tipos argumentativos, as estruturas sintáticas, semânticas e textuais, as implicações pragmáticas, sociolinguísticas etc.(…)” (p. 21).

(03) tratando de uma abordagem típica do law and humanities, há uma abordagem voltada a estética jurídica que destina-se à “(…) elaboração de teses e categorias para compreender, nos textos da cultura, a normatividade de qualquer forma (sejam textos escritos, ícones, musicais ou referentes à dimensão espacial e corporal, como a escultura ou a dança), normatividade à qual se acrescenta a posterior corrente de reflexão sobre a arte em seu ser e seu tornar-se, como pesquisa formal que é relacionada ao direito para observar o descartável entre os diversos modos de “dar forma” aos mundos da vida (…)” (p. 21).


REFERÊNCIA DO TEXTO-BASE PARA O RESUMO

MITTICA, M. Paola. O que acontece além do oceano? Direito e literatura na Europa. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 3-36, maio 2015. ISSN 2446-8088. Disponível aqui.


BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moares. Direito, Literatura e Cinema: Inventário de Possibilidades. São Paulo: Quatier Latin, 2011;

SNEDAER, Kathry Holmes. Storytelling in Opening Statements: Framing the Argumentation of the Trial. In: Narrative and the Legal Discourse: a reader in storelling and the Law. Coordenação: PAPKE, David Ray. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1991;

MINDA, Gary. Postmodern Legal Movements: Law and Jurisprudence at Century’s End. Nova York: New York University Press, 1995;

BARON, Jane B. Law, Literature, and the Problems of Interdisciplinarity. In: Yale Law Journal. Nº 108, 1999;

LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Unavoidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law? In: DOSSIER LAW AND LITERATURE A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível aqui.

Emanuel José Lopes Pepino

Doutorando em Direito. Advogado.

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