Oh! É o Batman!
Oh! É o Batman!
Ah, o primeiro júri…
Há algum tempo atrás, num dia extremamente frio, gelado, numa pequena e aconchegante Comarca do interior do Estado do Rio Grande do Sul, realizei o meu primeiro plenário de Tribunal do Júri. Havia me formado há poucos meses, porém, estava extremamente preparado, seguro, excitado por, finalmente, vestibular no júri.
Durante, pelo menos, os quatro dias que antecederam ao julgamento popular, receio que meus vizinhos não dormiram à noite. Eu imaginava, preparava, simulava o julgamento. Argumentava sozinho, argumentava no espelho, argumentava para a minha família, argumentava para a Amy(nem) – a minha cachorra Yorkshire. Treinava enquanto dirigia, pensava na saudação, não tinha sono nem fome. Aliás, é sempre assim.
É o famigerado ‘Estado de Júri’, que sempre sinto e não se confunde com nervosismo ou despreparo; é uma espécie de incursão no processo, no espaço e no tempo, onde não existe sono, fome ou cansaço. Significa ter ciência do tamanho da responsabilidade. Os segundos correm diferente, a dimensão do tempo é diversa. É inexplicável. Alguns o sentem – o ‘Estado de Júri -, outros não. Em outra oportunidade falarei mais sobre isso.
Bem. Sobre o primeiro júri. Recordo-me como se fosse ontem. Na manhã do dia do julgamento, que se iniciaria às 9h, acordei às 5h da manhã. Dei uma revisada em minhas anotações, no processo e mentalizei, pela milésima vez, a tese defensiva. Coloquei um rock’n roll alto e treinei, mais uma vez, a defesa. Vesti o meu humilde e barato terno; coloquei um sobretudo preto por cima. E fui para o que mais gosto de fazer: atuar no plenário.
A responsabilidade, como em todo caso penal, era grande. Na ocasião, defendia duas vidas, os destinos de dois cidadãos estavam em jogo. A acusação era de tentativa de homicídio qualificado, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de menores. Os dois réus, meus clientes, eram multi-reincidentes em delitos patrimoniais – alguns cometidos com violência. Aguardavam o julgamento presos cautelarmente há muito tempo.
Assumi a defesa deles, exclusivamente, para o Tribunal do Júri. Não acompanhei a investigação policial, tampouco a instrução processual em juízo. O júri foi pro bono, na defesa dos chamados – pelos intolerantes! – “indesejáveis.” A guerra de todos contra um estava caracterizada.
Em suma, a denúncia-crime narrava que os dois réus, mancomunados com um adolescente, teriam tentando ceifar a vida do ofendido, mediante socos, chutes, golpes de facão e, inclusive, com o emprego de arma de fogo. Para a acusação, os réus teriam tentado efetuar um disparo de arma de fogo, que somente não atingiu o ofendido porque o projétil teria ficado “trancado” no cano do revólver, dada a sua péssima conservação. O crime somente não teria se consumado porque o ofendido teria logrado fugir, desvencilhar-se dos réus, sair de sua residência e pedir socorro aos seus vizinhos.
Conversei com os réus em diversas ocasiões, antes da realização do julgamento, especialmente porque a relação Advogado-cliente deve ser, primeiramente, de confiança e transparência. A sinceridade é fundamental, especialmente quanto aos possíveis resultados do processo. A tese defensiva almejava o reconhecimento do privilégio (art. 121, §1º, do CP), porém, abordou-se também a possibilidade de Absolvição, com fulcro no princípio da desnecessidade da pena (art. 59, caput, do CP), vez que os Jurados, dentro de suas soberanas convicções, são livres para absolver.
O Júri foi repleto de incidentes. E é importante ter muita atenção quanto a essas questões. Uma vez instaurada a sessão de julgamento popular, o Magistrado Presidente – um grande Juiz de Direito – determinou, de forma discreta, que os agentes penitenciários trouxessem os réus desalgemados ao plenário. Eu presenciei esta ordem, em acato a Súmula Vinculante n.º 11, ao artigo 474, §3º, do CPP.
Entretanto, os agentes penitenciários, por lapso de memória, esqueceram da importantíssima ordem emanada pelo Juízo e trouxeram os réus, os meus dois clientes, algemados ao plenário para, somente na frente dos jurados, desalgema-los. Por óbvio, tive de requerer a palavra pela ordem e registrar a nulidade do ato, em afronta à Súmula retromencionada e ao artigo 474, §3º, do CPP, demonstrando o prejuízo causado à defesa dos réus (art. 563 do CPP), especialmente a indevida imagem de sujeitos perigosas que foi passada ao Conselho de Sentença.
Faz-se mister registrar que as nulidades eventualmente ocorridas em plenário devem ser arguidas e protestadas no ato, registrando tudo em ata, sob pena de preclusão.
Atenção: as nulidades posteriores à pronúncia, ex vi legis (art. 571, inciso V, do CPP), devem ser arguidas e registradas na ata logo depois de anunciado o julgamento e apregoadas as partes. Já as nulidades ocorridas durante o julgamento (art. 571, inciso VIII, do CPP), devem ser consignadas “logo depois de ocorrerem.”
O nobre Magistrado Presidente registrou a inconformidade defensiva e se retirou do plenário por alguns instantes. Em seguida, retornou e acolheu o pleito defensivo, reconhecendo a nulidade e dissolvendo Conselho de Sentença. A tristeza era nítida em sua expressão corporal, afinal, teve a cautela de ordenar que os réus fossem conduzidos sem algemas.
Os acusados, todavia, esperaram ansiosamente ao julgamento por muito tempo. Se não me falha a memória, por cerca de 3 anos. Eles queriam ser julgados naquele dia. E este é um ponto muito importante: quem manda, quem decide a estratégia defensiva é o Advogado. É o Advogado que deve assumir a responsabilidade e tomar as decisões. A responsabilidade é do Advogado, devendo sempre sopesar as consequências de cada decisão.
Naquele momento, solicitei, novamente, a palavra pela ordem e registrei, em público, perante o Magistrado, a r. Promotora de Justiça, o Conselho de Sentença e as demais pessoas ali presentes, que a Defesa desistia da arguição da nulidade, notadamente porque os réus estavam presos há muito tempo, queriam ser julgados e não tinham nada a temer. Estavam ali para contribuir com a Administração da Justiça. Observei, também, que o Juiz Presidente, na verdade, ordenou que os acusados fossem conduzidos pelos Agentes Penitenciários sem algemas; que foi apenas um pequeno equívoco, mas que, de outro lado, demonstrava como os réus vinham sendo tratados e injustiçados durante todo o período de prisão preventiva.
Eu assumi a responsabilidade de ir à julgamento mesmo diante da nulidade ocorrida. O Advogado, repisa-se, deve tomar decisões e assumir a responsabilidade pelas consequências. Naquelas circunstâncias, compreendi que, jogando o jogo, e apresentando réus colaborativos e interessados em serem julgados, poderia obter, quiçá, um bom, justo, resultado no julgamento.
Pois bem. Iniciou-se a instrução em plenário. Um dos réus foi interrogado e manteve a versão que sempre prestou no processo. O outro acusado, todavia, nervoso, e após ser pressionado pela acusação, apresentou, em plenário, no dia do Julgamento, uma versão completamente diferente, temerária, que nunca havia apresentado até então, contrariando suas próprias versões anteriores. O cenário ficou horrível. Ele estava dando causa à própria condenação.
Quando o Juiz Presidente passou a palavra a defesa, iniciei da seguinte maneira:
– Fulano, tu acha que nós somos idiotas? Para acreditar no que tu disse aqui hoje? Eu quero, como pedido pessoal, pedido do teu Advogado, da tua defesa, que tu conte a verdade, o que realmente aconteceu às Senhoras e aos Senhores que compõem o Conselho de Sentença.
Foi quando, então, ele apresentou um relato sincero, de acordo com as provas e circunstâncias do processo. Expliquei aos jurados que ele estava nervoso e que não é fácil estar sentado ali, como se fosse um ser indesejável, um inumano, um objeto e não uma pessoa e, ainda, ser pressionado por agentes públicos perante toda a sociedade.
Expliquei aos jurados de sua trajetória de vida, da sua precária educação e, obviamente, tive de explicar a questão das algemas, que, na verdade, como os jurados podiam perceber, os réus não são pessoas perigosas, são indivíduos tranquilos, pobres e miseráveis, com trágicas histórias de vida. Inclusive, estavam emocionados: os acusados choravam durante a fala. Não só eles, como algumas pessoas presentes, como policiais militares, assistência, servidores, meu estagiário, etc; alguns jurados lacrimejavam. Havia uma questão trágica no processo, envolvendo a exploração sexual de uma adolescente, sobrinha de um dos réus.
Enquanto falava de suas histórias de vidas e que estavam sendo tratados como inumanos, algo inusitado aconteceu: um dos agentes penitenciários, que assistia à sessão, levantou-se e, num ato de ímpeto, interrompeu a fala defensiva, corroborando-a, dizendo “é verdade”, “eles (os réus) são bem tranquilos e não incomodam na cadeia.” Aproveitei o momento e um intenso silêncio tomou conta do plenário. Um silêncio que gritava.
O Ministério Público, como de praxe, utilizou do recurso do argumento do excesso, que consiste em: “exagerar retoricamente um ponto de vista com a finalidade de levá-lo a aceitação (FIORIN, 2017, p. 222).” Trabalhou, quase que exclusivamente, com base nos antecedentes dos réus, destilando ódio e medo perante os Jurados, recorrendo-se a imagem de “paladino da justiça”, na medida em que o compromisso seria com a “sociedade” e ‘não com os clientes.’ Trata-se, novamente, do emprego de táticas retóricas, como a do argumentum ad baculum – o argumento que apela para o porrete:
É um argumento voltado para o futuro, pois o enunciado força o enunciatário a aceitar a sua proposta, recorrendo a uma ameaça, a uma proibição, a um valor negativo (FIORIN, 2017, p. 227).
Ainda, fez-se presente o emprego do recurso acusatório ao éthos do enunciador (invocando a figura do paladino da justiça). Conforme FIORIN (2017, p. 217-218),
É o éthos (caráter) que leva à persuasão, quando o discurso é organizado de tal maneira que o orador inspira confiança. (…). Observe-se que (…) o caráter daquele que produz um ato de fala, é uma imagem que se constrói no próprio ato de dizer. Por isso, a comunicação não se faz com o autor real do ato de fala, mas com uma imagem de si mesmo que ele produz ao falar ou escrever. O autor, ao mesmo tempo que enuncia uma informação, vai dizendo: eu sou isso, eu sou aquilo.
A tática da demonização dos réus também foi empregada. É um método amplamente utilizado por acusadores. Andŕe Leonardo Copetti Santos e Doglas Cesar Lucas (2015, p. 17), citando a obra de Eduardo Galeano (“Espelhos”), asseveram que o “diabo” é o diferente. “A diferença é o diabo e o devir de suas mil facetas minoritárias.” Na história, o Diabo “é muçulmano, judeu, negro, mulher, pobre, estrangeiro, homossexual, cigano e índio.”
Com efeito, para Copetti e Lucas (2015, p. 24),
em inúmeros momentos históricos, em diferentes locais do planeta, maiorias subjugaram minorias, hipossuficientes, submissos, criando, para isso, sistemas formais/legais de justificação de tais ações. Veja-se o caso das mulheres no Brasil. Até a entrada em vigor do atual Código Civil, encontravam-se elas em uma posição inferiorizada na administração da família, uma vez que a legislação atribuía ao homem a função de chefe da família.
O Julgamento fora conturbado, guerreado, com muitos apartes e discussões. Dentre tantos erros que eu cometi, um dos maiores foi gritar a todo momento. Jovem, no meu primeiro júri, quando encerrei a fala defensiva, estava com o coração, realmente, pulsando na garganta, exausto. Tinha dado tudo de mim.
Foi um erro. Gritar a todo instante não é o melhor mecanismo de convencimento, senão o respeito e a construção de um argumento sólido. Com o tempo fui aprendendo que o equilíbrio na fala é essencial, alterando o tom de voz, elevando e reduzindo o volume da fala, observando a expressão corporal e, especialmente, construindo um argumento estratégico, narrando a história dos fatos com início, meio e fim.
Nesta Coluna contarei muitos de meus erros, afinal, viver é uma errância (Marco Scapini). É errando que se aprende. Por mais paradoxal que possa parecer, quanto mais eu erro, mais eu acerto.
Quanto ao resultado do julgamento, o Conselho de Sentença apresentou um veredicto justo, razoável, equilibrado e condenou os réus, todavia, acolhendo a tese do privilégio, arguida pela Defesa. A pena fora fixada de maneira proporcional. Não houve recurso. Os réus já haviam cumprido boa parcela da pena imposta.
Durante o julgamento, apesar do frio que fazia, as discussões estavam acaloradas. Lembro-me que, ao retirar o sobretudo que usava (um “casacão enorme”), um dos acusados cutucou o outro, bem como o meu estagiário (grande amigo que me acompanha em todos os júris) e disse:
– Oh! É o Batman!
Na hora, recordei-me de Calamandrei:
não era um herói, nem um santo: era simplesmente… simplesmente… um Advogado!
Parafraseando Carnelutti (2009), os Advogados são os Cirineus da sociedade: carregam a cruz pelos outros. Semeiam o campo da justiça e não colhem seus frutos.
Até a próxima.
REFERÊNCIAS
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Editora Pillares, 2009.
FIORIN, José Luiz. Argumentação. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2017.
SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS, Doglas Cesar. A (in)diferença no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
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