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Olhar sob rodas


Por Rossana Brum Leques


No final do mês retrasado eu escorreguei. Como consequência, tive que fazer uma cirurgia de emergência, pois acabei quebrando o tornozelo. O resultado da operação foi muito exitoso e tudo não passou de um grande susto. Ainda assim, no decorrer da minha recuperação, deparei-me com uma situação nova– uma cadeira de rodas.

Foi somente após vivenciar esta experiência que percebi como questões aparentemente simples podem tornar-se desafios diários. O percurso de casa até o trabalho, ir ao toalete, circular em locais públicos… Não é fácil ser cadeirante nas nossas cidades. A precariedade da infraestrutura de acessibilidade, quando ela existe, costuma ser de pasmar. Pior. A indiferença, o despreparo e o desrespeito no trato pessoal também.

Não é à toa, portanto, que o direito penal possui dispositivos que tutelam especificamente as pessoas com deficiência, merecendo destaque, nesse sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº. 13.146/2015).

Antes de versar sobre os crimes específicos trazidos, fundamental esclarecer que a referida lei considera pessoa com deficiência quem: “tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”(art. 4º, Lei nº. 13.146/2015). A explanação é importante para evitar confusões. Isto é, quem, assim como eu, passa por um período de recuperação curto, não se enquadra no conceito. O relato pessoal trazido serve apenas para indicar que foi preciso que eu vivenciasse tal realidade para compreender melhor a necessidade da tutela específica.

Passemos, então, aos quatro tipos penais previstos no Estatuto em comento:

1) Crime de discriminação

Art. 88.  Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Consta no parágrafo primeiro do dispositivo causa de aumento da pena, caso a vítima esteja sob os cuidados do agente, pela especial reprovabilidade da conduta.

O parágrafo segundo, por sua vez, versa sobre a modalidade qualificada, na hipótese do delito ser praticado “por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza”, com a cominação de pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

2) Crime de desvio de bens ou rendimentos

Art. 89. Apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão, benefícios, remuneração ou qualquer outro rendimento de pessoa com deficiência:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Também nesta hipótese dispõe-se sobre causa de aumento de pena, caso o agente seja “tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial” ou “aquele que se apropriou em razão de ofício ou de profissão”. Novamente acertada a reprimenda majorada.

3) Crime de abandono

Art. 90. Abandonar pessoa com deficiência em hospitais, casas de saúde, entidades de abrigamento ou congêneres:

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem não prover as necessidades básicas de pessoa com deficiência quando obrigado por lei ou mandado.

Tal como ocorre com idosos, não é raro o abandono ou mesmo a negligência no trato de pessoas com deficiência. Triste realidade. Contudo, neste ponto a lei merece crítica. Isso porque se trata de conduta já prevista no Código Penal, ao menos a conduta do caput – crime de abandono de incapaz (art. 133 do Código Penal) –, cuja pena é idêntica à transcrita acima. Não há razão para o tipo especial.

É evidente que nem toda pessoa com deficiência se enquadra na acepção de incapaz do Código Penal. No entanto, parece correto afirmar que toda a pessoa com deficiência que for vítima do crime de abandono específico, também seria do crime de abandono de incapaz.

Observa-se, assim, que, embora seja louvável a preocupação e a mobilização para a promulgação do Estatuto, talvez a parte penal pudesse ter sido construída de forma diversa, com uma análise mais atenta em relação a possíveis antinomias. E, por fim,

4) Crime de apropriação ou desvio de recebimentos

Art. 91. Reter ou utilizar cartão magnético, qualquer meio eletrônico ou documento de pessoa com deficiência destinados ao recebimento de benefícios, proventos, pensões ou remuneração ou à realização de operações financeiras, com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Novamente pode ser feita correlação com o que ocorre com os idosos, que também contam com previsão específica a respeito. De acordo com o parágrafo único, a pena é aumentada se a conduta for praticada por tutor ou curador. Por ser crime de menor potencial ofensivo, aplica-se a Lei nº. 9.099/1995.

Trata-se de tema muito relevante e pouco tratado pela doutrina criminal. Fica, assim, o reconhecimento da necessidade de construção de políticas públicas sérias sobre a questão (que vão muito além do direito penal, é claro), da legitimidade da tutela penal e necessidade de divulgação e debate a seu respeito, por alguém que, ainda que por um breve período de tempo, sentiu na pele algumas das dificuldades que parte das pessoas com deficiência vivenciam diariamente. Fica também o registro do meu mais profundo respeito e admiração.

_Colunistas-Rossana

Rossana Brum Leques

Advogada (SP) e Professora

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