Omissão imprópria e tipos penais abertos
Omissão imprópria e tipos penais abertos
O tipo é um elemento de garantia fundamental dentro da teoria do delito. Funciona, se operado corretamente, como corolário da legalidade (art. 5º, XXXIX CF/88 – lei prévia, escrita, estrita e certa). Isso não significa dizer que o tipo penal se resume ao texto legal.
Em especial tomando por base a noção de tipo de injusto ou mesmo de tipo de garantia, certo é que o tipo deve conter de modo suficiente a matéria de proibição, inclusos os pressupostos positivos de ilicitude.
Assim, o tipo de injusto compreende “a realização não justificada do tipo legal, com presença dos elementos positivos (descrição da conduta proibida) e ausência dos elementos negativos (justificações) do tipo de injusto” (CIRINO DOS SANTOS, 2014: 104).
O fato do tipo conter a “descrição” da conduta de modo algum pode significar que ao tipo pertencem apenas elementos descritivos, perceptíveis aos sentidos.
Desde Mayer se sabe que o tipo está repleto de elementos normativos. Mesmo a diferenciação proposta Mayer entre elementos descritivos e normativos pode ser significativamente relativizada.
A presença de elementos “puramente” normativos no tipo, seguindo a definição trazida por Horta, baseado nas lições de Engisch, no sentido de que devem ser considerados normativos os conceitos que “só podem ser representados e pensados sob o pressuposto lógico de uma norma” (HORTA, 2017: 114), gera uma discussão importante sobre a amplitude da abertura legítima para o tipo penal.
Em outras palavras: ainda que se reconheça a impossibilidade de pensar o tipo penal através de conceitos absolutamente fechados, como desejava Beling, certo é que existem limites dogmáticos que precisam ser observados, sob pena de se esvaziar por completo a capacidade de delimitação do proibido que pertence a este elemento do conceito analítico de delito.
Não cabe ao presente texto elaborar um resumo de todas as teorias que procuram dar conta da definição e dos limites do tipo, em geral classificadas como teoria causal-naturalista, teoria neoclássica (fundada no pensamento neokantista), teoria finalista, teoria social e teoria(s) funcionalista(s).
A reflexão que pretende ser aqui colocada em discussão é: quão aberto o tipo penal pode ser, sem que perca sua função legítima de anteparo da legalidade e critério objetivo (por isso sujeito à crítica dogmática e criminológica) de análise político-criminal dos processos de criminalização primária?
Em primeiro lugar, faz-se mister adotar a posição de Juarez Tavares (2000: p. 168), para quem o conceito de tipo deve ser analisado segundo sua função sistemática e não universalizante.
Significa atribuir ao tipo “um papel categorial… possibilitando o perfeito enquadramento de alguns elementos controvertidos da teoria do crime, como a imputação do resultado, o objeto da ação, o conteúdo dos delitos omissivos e a estrutura do delito culposo… o tipo deve desempenhar o papel de objeto referencial”.
Partindo dessas premissas é possível apreciar as críticas de Roxin à teoria dos tipos abertos, de Welzel. Afirma o professor de Munique:
Con ello, se afirma que un concepto fundamental del derecho penal como el tipo tendrá que ser - si es que debe tener alguna idoneidad sistemática - "elemento fundamental" y "elemento delimitador" al mis- mo tiempo. Esto significa que todas las acciones que entran en consideración para el derecho penal deben referirse a una base común (elemento fundamental), y este concepto debe tener la posibilidad de captar solamente los sucesos esenciales para el derecho penal (elemento delimitador). Considerando desde este punto de vista los tipos abiertos se comprobará que no alcanzan ninguna de las dos exigencias. (ROXIN, 1979:264)
Com razão, Roxin aponta para o esvaziamento das funções dogmáticas legítimas do tipo ao se considerar, na esteira do que afirma Welzel, que os “elementos de dever jurídico estariam apartados como requisitos positivos adicionais da ilicitude” (HORTA, 2017: 76).
Essa já antiga discussão é ainda hoje extremamente relevante em virtude do crescente uso do direito penal como ferramenta preventiva em relação aos riscos próprios do atual desenvolvimento tecnológico-econômico.
O direito penal secundário, em sua construção dogmática, remodela (ou deforma) diversos elementos da teoria clássica do delito, com efeitos não só sobre os processos de criminalização nesta seara, mas também (e de modo muito mais sensível) sobre sua aplicação “tradicional”.
As observações acima descritas trazem elementos importantes para a análise da omissão imprópria, tema dos mais delicados na teoria do delito atualmente (junto com as discussões acerca das leis penais em branco, dos crimes de perigo “abstrato” e da teoria da imputação objetiva).
Quais os componentes típicos da omissão imprópria? Segundo Cirino dos Santos (2014: 203), além da situação de perigo, do poder concreto de agir (capacidade de agir) e da omissão da ação mandada em si, é necessário o preenchimento adicional de dois requisitos específicos: o resultado típico e a posição de garantidor.
Para Tavares (2012: 355 – grifos acrescentados), a “situação típica omissiva engloba todos aqueles elementos ou pressupostos que se associam à inação e fundamentam o dever de agir e o conteúdo do injusto do fato, com vistas ao perigo ou à lesão ao bem jurídico”.
Tendo essas lições em mente, nota-se que o tipo de omissão imprópria traz consigo a necessidade de delimitação do resultado típico e da posição de garantidor. Esta útilma é parcialmente resolvida em nosso código, quando aponta os fundamentos através dos quais uma pessoa passa a ocupar esta posição.
Diz-se parcialmente porque a hipótese do art. 13, § 2º, “a” do CP é demasiadamente porosa, em especial se considerarmos que a atribuição pela “lei” recebe por vezes uma leitura ampliativa, não exigindo lei em sentido estrito.
Assim, normativas oriundas de instâncias administrativas (tributária, financeira e ambiental) geram a posição de garante, criando uma margem de indefinição muito grande, a partir da qual surgem sérios problemas para o tratamento do erro e para delimitação da imputação objetiva.
Já quanto ao resultado típico, em geral este demanda a complementação de acordo com o tipo imputado em sua versão comissiva. Assim, para averiguar se houve o resultado típico (omissivo) realiza-se o juízo de tipicidade “de trás para frente”: verifica-se o resultado danoso ao bem jurídico e depois analisa-se se aquele agente que ocupava a posição de garantidor poderia ter agido para evitar este resultado.
O problema é que a posição de garante não vincula com clareza quais os deveres estão empenhados nesta especial posição de dever. Qual o conteúdo material destes deveres? Quais os resultados típicos estão sob o cuidado do garante? Por exemplo, o dever de vigilância sobre subordinados, que imputa ao garantidor a obrigação de dominar os perigos provenientes dos atos do subordinado – até onde vai esta obrigação?
Este é apenas um dos aspectos em que o tipo de injusto omissivo impróprio carece de um delineamento claro. Bernd Schunemann (2009), ciente deste problema, elaborou um dos melhores trabalhos específicos sobre o tema.
Tentando oferecer um elemento dogmático sobre o qual se possa construir a imputação em termos de uma teoria penal compatível com o Estado Democrático, Schunemann delineia a categoria do “domínio sobre fundamento do resultado” como uma base superior (anterior) para equiparação objetiva entre a ação e omissão, capaz de legitimar (internamente) o tipo de omissão imprópria.
Ponto importante é que Schunemann só admite a imputação por omissão imprópria nos delitos de resultado, justamente porque somente nestes o juízo de imputação proposto será possível.
O espaço não permite resenhar toda a extensa obra escrita pelo professor alemão, que merece ser conhecida. Ainda assim, percebendo a distância entre o modo como o Schunemann trabalha o juízo de imputação e o que é produzido pela jurisprudência, cabe o alerta de que, nos moldes atuais, a tipicidade da omissão imprópria padece de limites suficientes, trazendo sua configuração normativa para muito próximo daquilo que se pode considerar tipos abertos, incompatíveis com o Estado Democrático e, no final das contas, como bem afirma Horta (2017:77), uma contraditio in adjejcto (uma vez que não se pode conceber o tipo, que demanda a limitação da matéria de proibição enquanto elemento sistemático de garantia, como algo ‘aberto’).
REFERÊNCIAS
BIERRENBACH, Sheila A. Crimes Omissivos Impróprios. Niterói, RJ: Ímpetus, 2014.
D’ÁVILA. Fábio Roberto. Tipo, Ilícito e Valor. Notas conceituais e sistemáticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol 121. Ano 24. Pp. 99-126. São Paulo: Ed RT, julho, 2016.
HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial ons, 2016.
ROXIN, Claus. Teoría del delito penal: tipos abiertos y elementos del deber jurídico. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Depalma, 1979.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6 ed. Curitiba, PR: ICPC: 2014.
SCHUNEMANN, Bernd. Fundamentos y limites de los delitos de omisíon impropria: com uma aportacíon a la metodologia del Derecho penal. Barcelona, Espanha: Marcial Pons, 2009.
TAVARES, Juarez. Teoria dos Crimes Omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.