OMS, “Comportamento Sexual Compulsivo” e Direito Penal

OMS, “Comportamento Sexual Compulsivo” e Direito Penal

O tema do presente texto é o reconhecimento do Comportamento Sexual Compulsivo – CSBD, pela Organização Mundial de Saúde – OMS, como um transtorno mental. Esta condição traz consequências diretas no Direito Penal e gera alguns questionamentos sobre seu reconhecimento jurídico em casos de comprovada presença deste distúrbio.

Nesta semana foi veiculado nos meios de comunicação o reconhecimento do CSBD como um distúrbio mental pela OMS. A OMS visa incluir este transtorno na CID-11, no âmbito das “condições relacionadas a saúde sexual”.

Até então a organização apenas realizou este enquadramento, entretanto, afirma que ainda são necessárias mais pesquisas para demonstrar se a CSBD funciona da mesma maneira que os vícios em entorpecentes e jogos.

Desta feita, o documento ainda será posto a aprovação pelos países membros da OMS durante a Assembleia Mundial de Saúde em Genebra, que ocorrerá em maio de 2019, e, caso seja aprovado, entrará em vigor a partir de janeiro de 2022.

Embora a dependência sexual seja conhecida mundialmente há algum tempo, a OMS ainda não a incluía no rol dos distúrbios mentais. A organização não entende que seja um distúrbio condizente com os vícios, como mencionado, o que indicaria uma maior vinculação desta dependência com a criação de danos mentais persistentes. Nesta linha, não sabem afirmar, ainda, se há uma relação com vícios de comportamento ou não, o que será analisado nos próximos testes.

Na oportunidade do reconhecimento foi elaborado um conceito para o CSBD: “caracterizado pela falha persistente em controlar desejos ou impulsos sexuais repetitivos e intensos (…) que causam acentuado sofrimento ou dano”.

Sobre os indícios deste distúrbio, estão:

Isso significa que a desordem não está relacionada a quantidade de parceiros ou quanto sexo se faz, mas com um comportamento sexual que se torna o foco da vida da pessoa, levando o indivíduo a negligenciar a saúde, os cuidados pessoais, as atividades e outros interesses, assim como ignorar responsabilidades. Muitas pessoas que sofrem com o distúrbio querem resistir à necessidade constante de sexo, mas não conseguem. Às vezes, elas nem sequer sentem prazer com a atividade sexual repetida (VEJA, 2018).

No que tange a relevância do diagnóstico e de um estudo maior sobre este distúrbio, Robert Weiss afirma que

é realmente importante ter um diagnóstico, especialmente com questões sexuais. Isso nos permite articular melhor quem tem um problema e quem não tem, e isso o tira das mãos do paciente, da cultura ou da igreja e o coloca diretamente na ciência” (VEJA, 2018) (destaque nosso).

E o que se pode analisar com tal reconhecimento? Alguns fatores merecem ser discutidos para fins de aplicação no Direito Penal, como: 1) a diferenciação entre o CSBD e os vícios em entorpecentes e jogos; 2) A relação entre o distúrbio e o livre arbítrio; 3) A consequência penal do reconhecimento do CSBD no caso concreto; 4) O posicionamento da jurisprudência atual nestes casos e 5) A relação entre o CSBD e o princípio da individualização da conduta e da pena.

No texto de hoje abordaremos os dois primeiros questionamentos. Primeiramente, a diferenciação entre o CSBD e o vício em entorpecentes e jogos. Pelo que demonstra a decisão da OMS, as condutas divergem em dois pontos essenciais: 1) em relação à vontade do agente em realiza-la e 2) nos danos gerados a mente do indivíduo.

Como destacado anteriormente, sobre os danos ocasionados, pesquisadores da área afirmam que a submissão do indivíduo ao vício em sexo gera consequências mentais persistentes, que podem interferir na livre escolha do indivíduo. Isso sugere que o CSBD pode gerar consequências irreversíveis, enquanto o vício em jogos e entorpecentes podem ser revertidos.

Neste ponto, é importante frisar que a OMS destacou que ainda haverá mais pesquisas para determinar se o CSBD é um vício comportamental ou não e isso é capaz de trazer importantes reflexos no reconhecimento da responsabilidade penal do agente.

Desponta, portanto, uma preocupação com o famoso livre arbítrio. Tão questionado por muitos, o livre arbítrio, ainda hoje, é fundamento de responsabilização do Direito Penal subjetivo.

Há pesquisas tanto no sentido de sua existência, quanto na da sua inexistência, sendo este um campo fértil para os neurocientistas tomarem espaço em um trabalho conjunto na área jurídica.

O livre arbítrio, tradicionalmente, é entendido como a possibilidade de agir de outra maneira, ou seja, é vinculado diretamente com a existência de possibilidades de atuação do indivíduo.

Nessa situação, lembremos do “Quarto de Locke”. Para quem não conhece o mencionado dilema, ele deve ser entendido da seguinte forma:

O dilema, concebido por Locke (1689, posição 3282 – obra digital – Kindle edition), consiste no seguinte: uma pessoa a dormir é levada para um quarto; quando acorda, deseja permanecer, uma vez que se encontra com um conhecido, com o qual pretendia dialogar; não realiza qualquer conduta, portanto, direcionada a sair do quarto. Ocorre, porém, que o sujeito se encontra efetivamente preso – algo que ignora – e não poderia sair, mesmo que o quisesse. Indaga-se, pois: a conduta de permanecer no quarto, mesmo que sem uma oportunidade real de escolha, pode ser predicada como livre? Esclareça-se que Locke apresenta o exemplo no sentido de postular que a liberdade se configura a partir da possibilidade de atuação segundo a vontade, em um sentido ou n’outro, não se reduzindo à vontade mesma. Certo é que o exemplo do quarto de Locke recobra sua atualidade diante das inquietantes descobertas das neurociências no que concerne ao fenômeno da consciência, para as quais o direito penal não pode fazer ouvidos moucos. (FILHO, 2015, p. 50).

O que surge na relação entre o “Quarto de Locke” e a o distúrbio do comportamento sexual compulsivo é a seguinte pergunta: o “quarto”, compreendido como o distúrbio do CSBD, do qual o sujeito não pode sair e nele deseja permanecer, é livre? A liberdade exige alternativa de ação ou se satisfaz com a espontaneidade do comportamento?

Esses questionamentos são úteis para determinar até que ponto há liberdade na escolha do indivíduo e como essa liberdade deve ser compreendida (como espontaneidade? como relação intersubjetiva?).

Devemos recordar que a base ética do Direito Penal é a ligação entre a pena e a culpa do autor, cujo fundamento está na liberdade dos indivíduos. A premissa sobre a qual devemos partir é que não há possibilidade de responsabilização ética, moral e jurídica sem a existência de culpa (Kaufmann). Caso isto ocorra, estaremos diante de um Direito Penal do autor e não da culpa.

Portanto, nesta primeira abordagem do tema, resta claro que o cerne da discussão é a obediência ao princípio da culpa (nulla poena sine culpa). Este é responsável pela medida de culpa do agente diante de sua conduta e é este princípio que determinará a medida de pena e a individualização da conduta do autor, elementos que serão analisados na segunda parte deste texto.


REFERÊNCIAS

FILHO, Wagner Marteleto. O “Quarto de Locke” e a Culpa Penal: breves reflexões sobre a liberdade, determinismo e responsabilidade. Disponível aqui.

G1. OMS reconhece ‘comportamento sexual compulsivo’ como transtorno mental. Disponível aqui.

VEJA. Vício em sexo é distúrbio de saúde mental, diz OMS. Disponível aqui.