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Ordem econômica, crise e crime

Ordem econômica, crise e crime

Registro aqui algumas impressões pessoais acerca dos últimos acontecimentos concernentes na paralisação dos caminhoneiros e suas consequências.

Afasto qualquer especulação ideológica: pontos de vista, posição governamental, papel da mídia, fake news, redes sociais, lockout (ou locaute) x greve etc. Trato, estritamente, da conjuntura e de possíveis consequências especialmente no âmbito do crime e de sua repressão, desiderato deste Canal.

Fato: a Petrobras elevou o preço dos combustíveis que, atrelado à alta e complexa carga tributária incidente sobre os mesmos, atingiu patamares impraticáveis aos primeiros interessados. Vivemos, no Brasil, como sabido, uma logística econômica que se funda eminentemente no transporte terrestre, rodoviário, à base quase hegemônica de óleo diesel. Esse combustível encarece sobremaneira o custo de transação da operação transportadora, que já é exagerado quando atrelado a outros fatores tais como salários, pedágio (por eixo), seguro (do caminhão e da carga), a permanente manutenção do caminhão, a tributação incidente sobre a carga, armazenagem, devolução e reentrega de carga etc.

Fato: na semana passada, em todo o país, motoristas de caminhão articularam-se (de alguma forma) e “travaram” inúmeras rodovias estaduais e federais, paralisando o regular escoamento de produtos, insumos e até mesmo de combustíveis para os respectivos destinos. A diminuição da oferta atrelada à escassez de produtos suscitou, a partir de uma implacável lei econômica, o aumento dos preços dos tais produtos escassos, o que, por sua vez, irritou nova camada de manifestantes para além dos caminhoneiros. Exemplo sabido e sentido pela população foi a quadruplicação do preço de alimentos nos supermercados e de combustível (gasolina e etanol) nos postos, até o seu completo esgotamento – não sem antes receberem advertências e até autuações dos órgãos de regulação e de proteção e defesa do consumidor.

Fato: a baixa dos estoques em geral, somada à cobertura ostensiva da mídia a todo o evento, acirrou ainda mais o ânimo da população, e uma certa mentalidade de “caos” invadiu as filas, as casas, os grupos sociais virtuais. Paralelamente a isso, o governo trabalhava numa tentativa de acordo com os manifestantes – sem saber exatamente de onde esses partiam –, impondo a regra elementar que pretende sempre resgatar a “ordem”: intervenção, repressão, multas, liminares, sanção, punição.

Fato: em paralelo a isso, e inevitavelmente, os governos locais e as instituições tiveram que tomar providências quanto ao regular sistema produtivo. Escolas, universidades, fábricas, lojas suspenderam parte de suas atividades, tendo em vista, principalmente, a falta de combustível no transporte coletivo que, portanto, não conseguiria levar estudantes e trabalhadores aos respectivos lugares de atuação. A Ordem dos Advogados do Brasil chegou a suspender a aplicação do “Exame de Ordem”, que ocorreria no domingo em todo o país.

Diante do quadro político em que hoje vivemos no Brasil, todos esses fatos são consequências previsíveis. Mas eu prometi não adentrar a essa análise política que tenderia, sem dúvidas, a um posicionamento ideológico. Passo às consequências tanto reais quanto previsíveis de natureza criminal-punitiva.

Cabe analisar a legislação que estrutura o sistema da concorrência, dispondo sobre prevenção e repressão de crimes (ditas “infrações”) contra a ordem econômica: a Lei nº 12.529/2011.

O art. 36 abre o rol de infrações da ordem econômica, concernente em atos que conduzam aos seguintes efeitos: I- prejudicar a livre concorrência; II- dominar mercado; III- aumentar lucros (arbitrariamente); IV- exercer posição dominante (abusivamente). A partir dessas quatro diretrizes, o § 3º do mesmo artigo desdobra, em dezenove incisos, atos e efeitos específicos que configuram infrações à ordem econômica.

Especificamente quanto à “crise” atual nas rodovias brasileiras, é de se vislumbrar, na prática, que houve, em tese, por parte de comerciantes – especialmente no setor alimentício e de combustível popular – o aumento exacerbado de preços, muitas vezes em combinação, o que pode tipificar a conduta do art. 36, § 3º, I, a da Lei nº 12.529/2011 (“acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente”). Teria também ocorrido, em tese, a limitação prevista no inciso V desse mesmo tipo (“impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição”). Essa segunda hipótese também se aplicaria se for/fosse o caso de locaute – conduta igualmente proibida a partir da regra do art. 17 da Lei nº 7.783/1989 (“Fica vedada a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar negociação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados (lockout)”).

Seria ainda possível adotar, para todos os fatos dessa natureza ocorridos nesse contexto, as tipificações dos incisos VII, IX, X, XI, XIII, XVI e XVII do art. 36, § 3º da Lei nº 12.529/2011.

Quanto às penas a essas práticas infracionais, estão previstas nos arts. 37 e seguintes da referida Lei, e se comportam, resumidamente, a uma variação patrimonial, em termos de multa, de 0,1 a 20% do faturamento bruto da empresa (I), ou de R$ 50 mil a R$ 2 bilhões, quando não se estima o faturamento (II), ou ainda de 1 a 20% sobre a multa aplicada à empresa, aplicado diretamente ao seu administrador (III).

É evidente que o oportunismo da situação caótica instaurada a partir das manifestações, sejam elas espontâneas ou tenham elas sido conduzidas, é deveras cultural. Talvez em outras localidades ou culturas que não no Brasil essas condutas não tivessem sequer sido pensadas, quanto menos praticadas. Mas aqui, bem sabemos, elas são quase instantâneas e “naturais”. A curto prazo, e menos ainda no atual sistema econômico em que estamos inseridos, não vislumbro possibilidade de alteração de mentalidade.

De minha parte, temo as consequências das consequências: uma outra modalidade de crime, muito mais visceral e que também se atrela a um aspecto econômico, mas que advém de outro locus psicológico. Afinal, já temos notícia de que em alguns postos de gasolina brasileiros, nesse último fim-de-semana, em decorrência de discussões acerca de preços de combustível ou mesmo de “lugar na fila”, ocorreram homicídios!

Agressão, ameaça, vias de fato, lesão corporal, homicídio. Angústia, medo, pânico, estado de guerra. Essa é outra variável do comportamento humano. (É, também, tema para outro texto)

Aqui, tudo o que não existe é “ordem”.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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