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Ordem pública e gravidade em abstrato do delito

Ordem pública e gravidade em abstrato do delito

Na semana passada tecemos alguns comentários acerca da recorrente utilização do clamor público na fundamentação do decreto preventivo, sob o pretexto de garantir a ordem pública.

Partindo-se dessa premissa, a partir de agora analisaremos um outro argumento bastante utilizado para fundamentar a prisão preventiva, qual seja, a gravidade em abstrato do delito.

É prática rotineira nos tribunais Brasil afora a argumentação no sentido de que, em razão da gravidade em abstrato do crime, faz-se necessária a decretação da prisão preventiva para garantir a ordem pública.

Lima (2003) assevera que o fato de o crime possuir previsão na Lei de Crimes Hediondos (Lei n° 8.072/90) não implica em dizer que o crime é grave. Em outros dizeres: a hediondez de um crime não está estritamente relacionada com a sua gravidade.

Diz ainda que um crime pode ser considerado grave, no caso concreto, e não possuir previsão na Lei de Crimes Hediondos, como também pode ocorrer o inverso, visto que hediondez não implica, necessariamente, a gravidade do delito. Nota-se que “gravidade do crime” e “hediondez” são conceitos distintos.

A natureza hedionda de um crime advém da lei, que estabelece de forma taxativa e estanque os crimes que são considerados hediondos, repugnantes. Já a gravidade do crime, por sua vez, é um conceito subjetivo, suscetível de mudança, a depender da percepção do julgador acerca do fato criminoso.

Em outras palavras: o conceito de gravidade do crime é algo subjetivo e alterável de acordo com a percepção que cada julgador pode vir a ter do fato criminoso. Assim, acerca de um mesmo fato criminoso, juízes distintos podem ter entendimentos diferentes ou semelhantes sobre a gravidade do crime.

Nessa esteira, pergunta-se: a gravidade em abstrato de um crime é critério idôneo para a decretação da prisão preventiva?

Entendemos que a gravidade em abstrato de um crime não tem o condão de, por si só, dar ensejo à decretação da prisão preventiva, sob o manto da garantia da ordem pública. Admitir o contrário seria o mesmo que autorizar a prisão preventiva obrigatória para todo e qualquer crime considerado grave.

PROCESSUAL PENAL. SÚMULA 691/STF. PRISÃO PREVENTIVA MANTIDA NA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM BASE NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. FLAGRANTE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS CONHECIDO EM PARTE. ORDEM CONCEDIDA. [...]. 3. Hipótese em que o juízo sentenciante (a) não teceu qualquer consideração sobre a permanência ou não dos motivos inaugurais do decreto prisional; e (b) lastreou sua decisão tão somente na gravidade em abstrato do delito, circunstâncias que são rechaçadas categoricamente pela jurisprudência desta Corte. 4. Habeas corpus conhecido em parte e, nessa extensão, concedido. (HC n° 128.195. Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI. Segunda Turma. Julgado em: 08/09/2015).

É entendimento consolidado na jurisprudência do STF que a gravidade em abstrato do crime perpetrado, por si só, não é fundamento idôneo para decretação da segregação cautelar.

Entende-se que devem estar presentes elementos concretos, que possam fundamentar o risco à ordem pública – uma vez que o conceito de ordem pública, por si só, já é bastante vago e subjetivo –, para que a segregação cautelar possa vir a ser decretada.

Portanto, a mera referência a gravidade abstrata do crime não é critério suficiente para demonstrar o risco à ordem pública, pois essa demonstração deve ser feita com base em elementos concretos, que demonstrem o iminente e efetivo perigo à ordem pública advindo da prática do crime.

Assim, por exemplo, o fato de o agente delituoso ter praticado um crime hediondo ou o fato de ser temido na comunidade em que vive não são elementos considerados suficientes para que o perigo a ordem pública seja caracterizado.

Dessa forma, é preciso que a gravidade do crime seja aferida com base em elementos concretos, que sejam suficientes para demonstrar que, em razão do modos operandi pelo qual o crime foi executado, se faz necessário o isolamento do agente delituoso para garantir a ordem pública.

Em última análise, ao nosso ver, a gravidade do delito deveria funcionar, única e exclusivamente, como circunstância judicial, a ser aferida no momento da decretação da sentença penal condenatória, e não como argumento para fundamentar a decretação da segregação cautelar, já que toda e qualquer medida cautelar, por essência, se presta para resguardar e preservar o processo, e não a ordem pública.

Em outros dizeres: a gravidade do crime deveria ser utilizada apenas na primeira fase da dosimetria de pena como circunstância judicial desfavorável, nos casos em que estejam presentes elementos demonstrativos da maior culpabilidade do autor do crime, em virtude da presença de circunstâncias que indiquem que o fato criminoso foi executado de forma cruel ou repugnante.

Todavia, conforme o exposto, nosso entendimento é minoritário, tendo em vista que a gravidade do crime, desde que demonstrada através de elementos concretos, pode ser utilizada como argumento para a decretação da prisão preventiva. O que se veda, portanto, é a utilização da gravidade em abstrato do delito para fundamentar a custódia cautelar.

PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS . PRISÃO PREVENTIVA. SÚMULA 691/STF MITIGADA. LESÃO CORPORAL CULPOSA. EMBRIAGUEZ NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. FUNDAMENTAÇÃO ABSTRATA. ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. O decreto de prisão preventiva não traz qualquer motivação concreta para a prisão, quando apenas faz referência às circunstâncias já elementares do delito, valendo-se de fundamentação abstrata e com genérica regulação da prisão preventiva, além de presunções e conjecturas, evidenciando a ausência de fundamentos para a cautelar penal.[...]  (HC n° 384.523. Relator(a): Min. Nefi Cordeiro. Sexta Turma. Julgado em 04/04/2017)

REFERÊNCIAS

LIMA, Camila Eltz de. A garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva: (in) constitucionalidade à luz do garantismo penal. Porto Alegre: Revista de Estudos Criminais, nº 11, 2003.

LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 4 ed. São Paulo: Saraiva. 2013.

Daniel Lima

Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Advogado.

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