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Os conceitos de jurisdição e ação na execução penal (Parte 1)

Por Fauzi Hassan Choukr

A título de instigação

No presente trabalho não se procurará adentrar no já saturado discurso do distanciamento cultural e legal da legislação infraconstitucional para com o texto político de 1988 e seu necessário complemento, a Convenção Americana de Direitos do Homem, que a ele adere no mesmo status  jurídico (CHOUKR, 2000, passim). Não será mais uma vez denunciada a desumanização do sistema carcerário e das violações constantes na prática da execução (SÁ; 1997; MARTINS, 1997), objeto que são de reclamos  reiterados por organismos nacionais e internacionais.

Buscar-se-á, de alguma forma, contribuir para uma outra face do enfrentamento do problema – que nos parece menos enfocada do que deveria – que é da se indagar até que ponto conceitos fundamentais como os de jurisdição e direito de ação, praticados pelos operadores do direito (em sentido amplo)  contribuem para o quadro caótico apontado no parágrafo anterior.

Em outras palavras, até que medida o discurso dogmático que foi inovador numa determinada quadra histórica, não se apresenta hoje como fator de engessamento para o progresso da cultura constitucional no campo da execução penal e sua vivificação prática. Certamente, pelas dimensões físicas do presente texto, deve-se considerar que não é aqui foro adequado para o esgotamento da matéria, retornando-se desta forma ao título do presente tópico: a instigação, e  que levará, se a semente for boa, como apregoava Padre Vieira, no Sermão da Sexagésima, a que um semeador melhor venha a se ocupar do plantio.

Os limites do discurso da jurisdicionalização da execução penal na dogmática brasileira

A discussão sobre o caráter jurisdicional ou meramente administrativo da execução penal ocupou longo espaço nos debates acadêmicos (MARQUES, p. 27).

No início dos anos oitenta do século passado, às vésperas da edição da Lei das Execuções Penais, a  partir dos postulados da Escola Processual de São Paulo (BUZAID: 1982; ZAMORA Y CASTILLO: 1957), sobretudo quando da celebração das históricas “Mesas de Processo Penal” (GRINOVER & BUSANA: 1987, p. 5-13), parte significativa da comunidade acadêmica apresentou um pensamento consolidado: a execução penal teria ao menos “momentos” jurisdicionais, dentre os quais se destacam o seu início, a decisão sobre seus incidentes e o reconhecimento do fim da aplicação da pena. (GRINOVER et alli: 1991,  p.3-21).

Efetivamente vanguardeiro para aquele momento histórico, tal modo de enxergar a persecução penal na fase executiva deu frutos interessantes, podendo ser resumidos na seguinte posição de outro sempre festejado doutrinador paulista:

“Com a aceitação de que há processo e jurisdição na execução penal conclui-se que há também partes em contraditório, estando de um lado o Estado como titular da pretensão executória, representado pelo Ministério Público, e de outro o condenado, que deve sempre, ser também assistido por advogado” (FERNANDES:1988)

Reconhecer nominalmente a existência do exercício de jurisdição – por meio do direito de ação, acrescente-se – extraindo-se a materialização de um procedimento banhado por contraditório, alcançando-se assim a consecução de um “processo de execução penal” impõe indagar sobre alguns aspectos essenciais: de qual “conceito de jurisdição” se está a falar e de qual “conceito de direito de ação” se trata para operacionalizar o sobredito exercício jurisdicional. Para tanto uma breve digressão se faz necessária.

Efetivamente, a partir de uma leitura estritamente vinculada à Escola Processual de São Paulo, o conceito dominante de direito de ação à Liebmann parece ser inabalável. Contudo, a crítica à uniformidade  com que a maioria da doutrina pátria se habituou a tratar o tema do direito de ação não é nova. Com efeito, BOTELHO DE MESQUITA (1975, passim), naquela que pode ter sido a última grande obra monográfica no direito brasileiro  sobre a matéria, já invocava lição pretérita para se referir a essa acomodação em torno dos postulados Liebmann, deixando claro que o silêncio consensual sobre os fundamentos do direito de ação acarretara um empobrecimento científico e político em torno do assunto.

Se a critica de MESQUITA é de ser considerada válida para a seara processual civil, locus no qual o trabalho daquele acadêmico se desenvolve em maior amplitude, o mesmo se dá com o processo penal, cujo espaço dogmático dos temas fundamentais vem se construindo, na doutrina dominante, historicamente à sombra do processo civil, numa dependência técnico-científica reconhecida também há muito.

Com efeito, a condição “subalterna” do processo penal em seus temas centrais é destacada, notabilizado particularmente num texto de Carnellutti pela invocação comparativa do processo penal a uma personagem literária  reconhecida pela sua submissão mas, que, ao final do texto, festeja sua felicidade com a superação de suas concorrentes e escapa da miserabilidade que lhe era forçadamente imposta.A importância do resgate histórico das correntes compreensivas do direito de ação talvez possua, para o processo penal, o caráter final da metáfora carnellutiana. A recuperação das concepções do direito de ação – inicialmente havidas no âmbito processual civil – pode nos mostrar que:

I) a visão dominante não responde à necessária premissa constitucional para o processo penal, não apenas no que tange à discussão sobre quais são as “condições” do exercício do direito de ação mas, sobretudo, no vínculo a uma forma de compreensão da jurisdição;

II) disto decorrerá que o direito de ação, tal como empregado no processo penal pátrio contemporâneo, atua uma forma de jurisdição por não raras vezes atentatória ao Estado de Direito. Neste ponto o processo passa a ser um instrumento de política criminal (e de governo) na qual a posição central é ocupada pelo Estado-Jurisdição como órgão decisório, sendo a busca da “resposta” jurisdicional a grande meta, ainda que ela se dê de um ponto de vista meramente formal e, em grande medida, sem lastro no direito material correspondente;

Enfim, o conceito abstrato de jurisdição tal como empregado por Liebmann justifica um poder estatal que dificilmente se amolda aos ditames do Estado Social e Democrático de Direito. Sua projeção para o processo de execução penal incentiva a instrumentalização do condenado como um “objeto da execução” e não o alça à condição de um verdadeiro “sujeito de direitos na execução”. Daí porque, embora sendo reconhecido amplamente pela doutrina atual que se está diante de um exercício de jurisdição, toleram-se juridicamente, com a criação de justificativas dogmáticas em descompasso com a CR e com a CADH, muitas das inumanidades cometidas na fase executiva.


* A versão original deste texto é de 2004 e, passada uma década, as questões aqui enfrentadas permanecem atuais justificando a republicação, com ligeiras modificações em relação ao texto anterior. Vai, também, como uma singela homenagem à preocupação hoje dispensada pelo eminente prof. Elmir Duclerc e parte da Escola Baiana Processual Penal ao tema do direito de ação.


REFERÊNCIAS

BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Da ação civil. SP: RT, 1975.

BUZAID, Alfredo. Grandes processualistas. São Paulo: Saraiva, 1982.

CHOUKR, Fauzi H. A convenção interamericana dos direitos humanos e o direito interno brasileiro – bases para sua compreensão. SP:Edipro, 2001.

FERNANDES, Antonio Scarance. Execução penal: questões diversas. In: JUSTITIA. Jul./Set./1988. v.143 p.63-78.

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhaes; FERNANDES, Antonio Scarance. A exigência de jurisdicionalização da execução. Em: Fascículos de Ciências Penais. Jul./Set./1991. v.4 n.3 p.3-21.

MARTINS, Sergio Mazina. Execução penal e direitos humanos. In: Boletim IBCCRIM, jul/1997, v. 56, pp. 8-9.

SÁ, Alvino Augusto de. Execução penal e direitos humanos. In: Boletim IBCCRIM, jul/1997, v. 56, pp. 7-8.

ZAMORA Y CASTILLO, Niceto Alcalá. A escola processual de São Paulo. Em: Revista Forense. Mar./Abr./1957. v.170 p.504-508.

_Colunistas-Fauzi

Fauzi Hassan Choukr

Promotor de Justiça

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