Os conceitos de jurisdição e ação na execução penal (Parte 2)
Por Fauzi Hassan Choukr
Qual jurisdição na execução penal?
A dificuldade de adequação constitucional do conceito de jurisdição à esfera executiva pode ser identificada pela incompreensão do funcionamento do modelo acusatório.
Com efeito, quando se fala em acusatoriedade como manifestação processual de um determinado modo de ser político do Estado, projetando esses valores para o exercício da jurisdição, predominante isto é feito com os olhos na atividade cognitiva (ação de conhecimento). Poucos autores dão a importância de CARVALHO (2003: p. 172 e ss) ao reconhecimento de uma jurisdição de cariz inquisitiva no desenvolvimento da execução penal.
Se, num Estado social e democrático de direito, a legalidade é a baliza do exercício da jurisdição, que não é autônoma em relação às bases do seu funcionamento, mas subordinada estritamente à lei, não se pode negar pelo menos dois pontos fundamentais que violam o exercício jurisdicional a partir dessa premissa: (i) o altíssimo grau de normas administrativas, criando um sistema legal paralelo à Lei das Execuções Penais, que incidem diretamente no exercício jurisdicional da execução da pena e (ii) a movimentação do Estado-jurisdição na execução da pena sem a necessária previsão normativa. Em outras palavras, o exercício jurisdicional desgarrado de uma determinada norma de direito material.
Particularmente exemplificativo desse último ponto é o denominado Regime Disciplinar Diferenciado, criado por um órgão administrativo de um determinado Estado-membro e que, compreendido como um “exemplo” a ser seguido, acabou atraindo presos “notórios” para seu interior. Base legal para tanto, no sentido exigido pela CR/88, não existia até a edição da Lei 10.792/03.
Quando se tolera o exercício jurisdicional pelo qual o Estado se vê autorizado a prolatar uma decisão (em sentido amplo) sem que ela venha acompanhada concretamente de uma norma de direito material (no sentido estrito dessa acepção) ele só pode estar legitimado a partir de uma determinada forma de compreensão do “direito de ação” pela qual, a partir de uma visão abstrata de seu funcionamento, atue-se uma jurisdição de cunho estritamente “decisionista”. Exatamente este um os aspectos essenciais do direito de ação na forma apregoada pela doutrina dominante.
Qual direito de ação para a execução penal?
Recorde-se, a partir da lição de Buzaid (1960), a exposição tradicional das doutrinas mais concentradas de explicação do direito de ação:
“a do Rechtsschutzanspruch: sob essa denominação, Wach definiu o direito subjetivo público processual, pertencente ao titular de um direito material dirigido contra o Estado, ao qual se pede uma proteção jurídica mediante uma sentença favorável e dirigida contra o réu, a fim de que este sofra o ato estatal protetor; b) a dos direitos potestativos: utilizando o conceito de direito potestativo, Chiovenda, na Itália, concebeu a ação como o poder jurídico de realizar as condições para atuação da vontade da lei; c) e a da ação como direito abstrato: é ela um direito subjetivo público individual do cidadão contra o Estado (direito cívico), que tem como elemento substancial o interesse secundário e abstrato do indivíduo à intervenção do Estado para a eliminação dos obstáculos que, por qualquer razão, se interpõem à atuação do direito.”
A concepção prevalente, a partir da posição de Liebmann, é a de um direito abstrato (embora muitas vezes apregoado como “misto”), fundado no exercício de um direito subjetivo público. Contudo, a permanência dessa categoria de direitos perante os fundamentos contemporâneos do Estado social e democrático de direito é altamente duvidoso.
Tal abordagem foi alvo de questionamento a FERRAJOLI em entrevista concedida em 14 de dezembro de 1997 quando lhe foi perguntado como “entende o conteúdo da fórmula jurídica “direito subjetivo público” em face da construção teórica do garantismo”, tendo sido sua resposta literal que “A expressão nasce na cultura alemã do século passado e, depois, transfere-se para a italiana, pela obra de Santi Romano. Na construção italiana, a fórmula “direito público subjetivo” está intimamente ligada à concessão de direitos pelo Estado com o objetivo de diminuir o papel dos direitos fundamentais. Isto porque, em sua origem, era uma idéia organicista e decisionista do Estado, de caráter anti-iluminista, anti-jusnaturalistica, que nega o caráter social do Estado. O direito público subjetivo procuraria encerrar, então, uma auto-limitação, uma auto-obrigação, do poder estatal, que é uma idéia que, de fato, nega o caráter, por assim dizer, da existência de direitos contra o Estado. Tudo isto está na base de uma certa visão que justifica a impossibilidade da existência de direitos fundamentais e mesmo de jurisdição contra o Estado. Mas na Europa há uma verdadeira revolução de paradigma constitucional e jurisdicional que vai de encontro ao denominado direito público subjetivo”.
Tal lição é repetida por DUARTE (2003, pg. 32 e ss) quando esclarece que direito público subjetivo encontra-se “situado no fundamento da ordem e do ordenamento jurídico, o Estado aparece, como repete Jellinek pessoa capaz de instaurar as relações de domínio, às quais correspondem uma formal sujeição dos indivíduos: sua liberdade natural não alcança relevância senão desde o pressuposto de vir formalmente reconhecido pelo Estado pessoa”.
Isto se reflete no direito de ação e, também, na materialização do processo por meios das regras do denominado “devido processo legal” para doutrina dominante. Naturalmente se observa a conseqüência desta premissa: “as garantias constitucionais-processuais, mesmo quando aparentemente postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo segundo as regras do devido processo legal” (GRINOVER et allii: 1992, p. 21).
O direito de ação, portanto, enquanto fundado nos paradigmas acima expostos, atuando um determinado conceito de jurisdição que não reflete a acusatoriedade intrínseca do Estado de direito, será um fator dogmático impeditivo do aperfeiçoamento da jurisdição penal.
O reconhecimento formal da sua existência, de igual modo formalmente reconhecidas as regras do devido processo legal em seu interior, não basta para conformar essa etapa da persecução penal aos parâmetros acusatórios. É necessário, para além desse reconhecimento, revigorar as bases ideológicas desses conceitos. Caso contrário, as inumanidades tantas vezes denunciadas, as imensas lacunas de legalidade e a intervenção administrativa no transcurso da execução não apenas continuarão a acontecer como se sucederão sob o manto formal da existência de uma jurisdição, do direito de ação e do devido processo legal.
REFERÊNCIAS
BUZAID, ALFREDO. Paula Batista: Atualidades de um Velho Processualista. In Justitia 179-180.
CARVALHO, Salo. Pena e garantias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.
DUARTE, Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito. São Paulo: Landy, 2003.
GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1992.