Os crimes do absinto e sua proibição
Por Vitor da Matta Vivolo
O consumo de álcool e suas relações com as práticas de lazer quotidiano fazem parte da história dos eventos sociais humanos. O sociólogo francês Alain Ehrenberg chegou a afirmar em 1995 que as bebidas alcóolicas são uma espécie de “lubrificante da sociabilidade popular”, tomando papel significante em situações de recreação das diferentes camadas sociais. Não são nem um pouco incomuns os exemplos de ebriedade etílica nas quais grupos de pessoas se tornam mais relaxados, falantes e até mesmo amigáveis. Pouco incomuns também são situações de melancolia e violência relacionadas ao mesmo agente.
Um dos ápices da intersecção entre o uso recreacional de bebidas alcóolicas e a prática de atribuições ritualísticas na modernidade é o consumo de absinto nos cafés e bulevares da Belle Époque, a transição do século XIX ao início do XX: o cambiar de cores da bebida ao ser diluída em água, os cubos de açúcar sobre colheres ornadas, a parafernália risqué sobre as mesas de bar. L’heure verte – “a hora verde” -, como era chamado o costume de se beber uma taça do esmeraldino licor religiosamente às cinco da tarde, compunha um dos principais hábitos dos povos francófonos e francófilos. Essa famosa hora do dia foi assim batizada não só devido à cor do líquido, mas também ao perfume do anis que inundava as ruas do fin-de-siècle, inclusive, literalmente, quando um incêndio na famosa destilaria Pernod (em 1901) fez com que litros de absinto fossem despejados no rio Doubs, tingindo suas águas com matizes lactescentes e exalando o característico aroma adocicado por quilômetros.
“Fada Verde”, “Musa de Olhos Verdes”, “a Feiticeira” e “a Bruxa Branca” (referente à variação suíça blanche, ou transparente, do licor) eram somente alguns dos sinônimos populares da infame bebida destilada cujo principal ingrediente é a losna (Artemisia absinthium, o nome da bebida deriva deste), seguida do anis e do funcho doce. Sua coloração sortia do amarelo citrino ao verde esmeralda, incluindo versões totalmente translúcidas.
Cores fosforescentes eram resultado artificial da infusão de clorofila à produção final, muitas vezes mascarando algum produto de qualidade inferior; qualidades estas que dependiam de fatores como a utilização de álcool de uva (de melhor categoria) ou industrial (de pior procedência) e da quantidade de óleos essenciais de losna ou anis. Os graus alcóolicos deslizavam entre 60% e 90%, fazendo com que a bebida tivesse que ser diluída em água antes de ser ingerida. O absinto nunca foi feito com o intuito de ser consumido puro ou em shots flamejantes como é prática de hoje em dia. Seus rituais de consumo não eram sequer similares aos atuais ritos boêmios.
Segundo a versão mais aceita da invenção do absinto, Dr. Pierre Ordinaire, em 1792, elaborou uma receita de tônico altamente alcóolico utilizando as artemísias silvestres dos arredores da aldeia suíça de Couvet e posteriormente repassou-a a duas irmãs solteiras de sobrenome Henriod, também versadas no estudo de ervas. Alguns, controversamente, atribuem o pioneirismo da produção justamente a tal dupla, que posteriormente vendeu sua fórmula a um certo Major Dubied, cuja filha casou-se com Henri-Louis Pernod. Ambos cavalheiros foram fundadores de famosas destilarias. Daí em diante, a produção e o consumo da nova descoberta etílica cresceram e galgaram protagonismo no mercado de bebidas. De tônico tornou-se, na década de 1840, o drinque favorito dos soldados franceses que retornavam da África do Norte e cujo costume fora adquirido devido às garrafas levadas ao fronte de batalha. A população aderiu à moda e nos anos seguintes o ritual dos absintheurs e absintheuses (“absinteiros e absinteiras”, ou “absintistas”, segundo neologismos da língua portuguesa da época) já estava armado.
Beber absinto não era tarefa simplista: uma taça específica, de enlevo demarcado para as medidas e proporções requeridas, é colocada sobre a mesa e verte-se o líquido verde até o nível indicado de uma dose. Em seguida, uma colher especial, vazada, é apoiada sobre as bordas do copo e acrescenta-se um cubo de açúcar a ela. Despeja-se então um fio de água gelada vagarosamente sobre o cubo, fazendo com que se desmonte e que a solução açucarada perpasse os vãos da colher e se misture – pouco a pouco – ao licor dentro do copo numa proporção de aproximadamente 3 ou 5 doses para uma. Ao entrar em contato com o absinto, a água altera a densidade da bebida e faz com que os óleos essenciais sejam desprendidos do álcool. A cor esverdeada transmuta-se em opalescente e os vapores anisados sobem pelos arredores, a essa passagem dá-se o nome de louche (“enuviado”, “enfumaçado”). Essa ritualização do beber – de romantismo comparável à transubstanciação católica – conferia ares de sofisticação àquele que a executa corretamente.
Infelizmente, o tal happy hour sofisticado tornou-se decadente. A queda nos preços de absinto devido à praga nas plantações de uva aumentou vertiginosamente seu consumo nas camadas mais populares, fazendo com que um copo de absinto custasse um terço do filão de pão, assim como colaborou para a queda de sua qualidade, visto que o álcool de uva foi substituído pelo de tipo industrial. A gota d’água para os absintheurs – com o perdão do trocadilho – foi a adesão da classe operária aos consumidores da preciosa bebida. O recreacional e elegante passou a ser vício e doença.
Numa época em que uma taça de absinto é mais barata que o próprio pão, não é de se estranhar o aumento nos índices de alcoolismo, ou melhor, segundo as fontes da época, absintismo. O rapaz absintista, antes sofisticado, agora é identificado com o bêbado; a mulher bebedora de absinto, eroticamente transgressora e moderna poucos anos atrás, agora é associada à figura da prostituta e à vulgaridade.
Curiosamente, em terras brasileiras, a proibição da verde bebida foi pioneira. Aprovado em trinta de dezembro de 1905, o decreto de Lei n. 1452 anexa ao orçamento previsto para 1906 da Republica dos Estados Unidos do Brazil (sic) providências a serem seguidas na importação de produtos no país. Dentre as medidas, incluiu-se no art. 6o da Tarifa das Alfândegas “todas as bebidas que contiverem absintho ou quaesquer outras essencias nocivas” (sic) (Brasil, 30 dez. 1905). Proibiu-se assim a entrada do licor no Brasil ao lado de outros produtos nocivos à saúde. Junto à Bélgica (que também tomou providências contra a bebida no mesmo ano), fomos um dos dois primeiros países a decretar o banimento da perniciosa fada verde.
Continuamos semana que vem, na segunda parte do presente artigo, a elucidar a proibição da bebida e suas representações em jornais brasileiros.
REFERÊNCIAS
ACOLÁ. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 2, 10. Jul. 1909. Chamada no texto: (Acolá, 10 Jul. 1909).
BAKER, Phil. Absinto – Uma história cultural. São Paulo: Nova Alexandria, 2010. Chamada no texto: (BAKER, 2010)
BRASIL. Poder Legislativo. Ato n. 1452, de 30 de dezembro de 1905. Colleção das Leis da Republica dos Estados Unidos do Brazil de 1905, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, vol. I, p. 99, 1907. Disponível em: <http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/19121>. Acesso em: 06 Mar. 2015. Chamada no texto: (Brasil, 30 dez. 1905).
CORREIO PAULISTANO. Correio Paulistano, São Paulo, p. 1, 29 Jul. 1909. Chamada no texto: (Correio Paulistano, 29 Jul. 1909).
O ALCOOLISMO. Pacotilha, Maranhão, p. 1, 30 dez. 1911. Chamada no texto: (O Alcoolismo, 30 dez. 1911).