Os demonólogos e a Criminologia: o surgimento da Criminologia
Os demonólogos e a Criminologia: o surgimento da Criminologia
Apesar de pouco pautado pelos doutrinadores, decerto em razão da inclemência do período, sabe-se que a inquisição foi o berço da criminologia, ainda que, somente no século XIX, ela tenha sido enxergada como ciência.
Demasiadamente tratada no período inquisitório, a demonologia dedica-se ao estudo sistemático de diferentes demônios, em concordância com a crença de cada religião. Os demonólogos, título concedido aos membros da ordem dominicana da Igreja, tinham por objetivo desvendar a origem do mal, assim como compreender toda a sistemática que circundava o diabo.
Na Idade Média, a inquisição e a demonologia andavam de mãos dadas, a fim de culminar com a expansão do sistema repressor, tão cultuado à época. Faz-se necessário salientar que, atualmente, caminhando pelas ideias de Zaffaroni, é possível verificar que o sistema penal máximo e a criminologia midiática atuam de forma bastante similar.
A inquisição foi a “primeira agência burocratizada dominante” voltada à aplicação de castigos e à definição de verdades; é dizer, a primeira a formular um discurso de tipo criminológico (ANITUA, 2008, p. 54). Esse discurso servia como justificativa para a sua forma de atuar, fundamentando seu poder punitivo em uma suposta “emergência” que afetaria, em última análise, a própria humanidade. Justamente por isso Eugênio Raul Zaffaroni assevera que os demonólogos podem ser considerados os primeiros etiólogos do crime (ZAFFARONI, 2012, p. 48).
Os demonólogos criaram uma estrutura discursiva que persiste até os dias atuais, com base em supostas situações emergenciais para criar uma paranoia social e um pânico coletivo que sirvam como licença para que quem seja responsável exerça o poder punitivo sem limite algum.
A ideia de Satã como inimigo na origem da criminologia nos leva a traçar um panorama histórico mais profundo, trilhando dois caminhos: a evolução da criminologia e o conceito de inimigo nas sociedades ao longo da história, estudado principalmente Zaffaroni. Satã foi eleito como inimigo em uma época que a inquisição havia conquistado seus objetivos de liquidar com os chamados hereges e inimigos territoriais de Roma, e que não eram mais suficientes para alimentarem o poder punitivo, era preciso eleger um objeto-alvo para sofrer o poder punitivo que a verticalização romana exigia (SANTOS, 2014).
Cumpre acentuar que, à época inquisitorial, existiam os glosadores, que comumente são confundidos com os demonólogos. Enquanto aqueles compunham um dos primeiros grupos de penalistas da história, sendo responsáveis pela interpretação de leis – da maneira que bem entendiam, diga-se de passagem –, estes correspondiam, em síntese, a estudiosos da natureza dos demônios.
A independência da criminologia em relação ao direito penal tornou-se realidade com a obra Malleus Maleficarum, ou Martelo das Feiticeiras, em 1484. Escrito pelos inquisidores Heinrich Kreaemer e James Sprenger, o livro, que hoje poderia ser intitulado como um “best-seller”, sintetizava os conhecimentos e temores daquele período, da mesma forma que trazia embasamento teórico para autenticar a perseguição às mulheres. Sabe-se que a misoginia era praticamente inerente à inquisição, no entanto, o Martelo das Feiticeiras fortaleceu – e muito – essa aversão às mulheres.
Tanto é assim que, em um trecho de Malleus Maleficarum, Kraemer e Sprenger dissertam:
(…) por que essa perfídia é mais encontradiça nas pessoas do sexo frágil e não em homens. Nossa primeira indagação será de caráter geral, quanto às condições gerais das mulheres; a segunda será particular quanto ao tipo de mulher que se entrega à superstição e à bruxaria; e por fim, a terceira, específica às parteiras, que superam todas as demais em perversidade. (…) as mulheres possuem também memória fraca; e nelas a indisciplina é um vício natural: limitam-se a seguir seus impulsos sem qualquer senso do que é devido; e sua instrução segue a medida da sua indisciplina, pois muito pouco lhes é dado guardar na memória. (KRAEMER e SPRENGER, 2017, p. 90 e 96).
Através de Malleus Maleficarum é possível compreender, historicamente, boa parte das ilicitudes que perduram em face das mulheres até a atualidade. O fato de a mulher ser disposta em uma posição inferior àquela ocupada pelo homem – e pela sociedade, como um todo – legitimou séculos de barbaridades.
Além de serem vistas como seres inferiores pelos inquisidores, as mulheres também eram consideradas inimigas da sociedade, em razão, principalmente, das questões já expostas, o que criava embasamento legítimo para que ceifassem suas vidas.
Nesse sentido, Zaffaroni aduz:
(…) a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais. (ZAFFARONI, 2007, p. 18).
Com o advento das colonizações, os jesuítas apropriaram-se das rédeas do poder punitivo e do estudo criminológico – retirando-as dos dominicanos –, trazendo a racionalidade à tona. Assim, em 1631, Friedrich Spee, em oposição ao Martelo das Feiticeiras, lançou Cautio Criminalis, ou Prudência Criminal, obra esta que é vista pelos doutrinadores como a pioneira da criminologia crítica. Mais tarde, Christian Thomasius, envolvido pelo iluminismo, publicou Dissertatio de Crimine Magiae, que aliou-se ao Cautio Criminalis a fim de findar, de uma vez por todas, o emprego do Malleus Maleficarum.
REFERÊNCIAS
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
KRAEMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras, malleus maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores. Tradução de Paulo Fróes. 28. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
SANTOS, Bruno. Histórico da Criminologia. Da Idade Média às Escolas Americanas: um breve relato. Disponível aqui.
VIANA, Eduardo. Criminologia. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão, 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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