Os erros de Modesto Carvalhosa sobre o juiz das garantias

Os erros de Modesto Carvalhosa sobre o juiz das garantias

Desde o início da década de 1990, o jurista Modesto Carvalhosa figurou como um dos mais proeminentes combatentes da corrupção no Brasil. Em entrevistas e livros, o ex-professor de Direito Comercial da USP pleiteou por reformas legais inibitórias das condutas lesivas à Administração Pública, em especial na seara criminal, chegando a protocolar um pedido de impeachment do Ministro Gilmar Mendes, do STF, em 2018.

Neste cenário de acentuada aversão à corrupção de agentes políticos, emergiram, no ordenamento penal pátrio, numerosas reformas pontuais destinadas ao seu combate. A mais ilustre (e recente) se deu na Lei n. 13.964/2019, o Pacote Anticrime. Entre tantas modificações, a mais controversa veio a ser a promulgação do “Juiz das Garantias”, instituto que consagra o sistema de “doble juez”, pelo qual o julgador da fase pré-processual ficará impedido de funcionar como juiz de instrução e julgamento, para a garantia da imparcialidade e da originalidade cognitiva.

Instantaneamente, Carvalhosa iniciou uma impetuosa cruzada contra o instituto supramencionado. Em suas redes sociais, invocou dispositivos constitucionais para dirimir a legitimidade desse sistema, concluindo por sua “absoluta inconstitucionalidade”.

Ademais as questões de “economia” e “viabilidade prática” da implantação do Juiz das Garantias, que poderão ser tratadas em momento distinto, o propósito deste referente texto é responder as fervorosas indagações do jurista a respeito de supostas violações à Carta Magna de 1988, nos seguintes trechos:

Lamentável e inaceitável a campanha publicitária promovida pelo atual presidente do STF, patrocinando e “viabilizando” a implantação do chamado “juiz de garantia”.

E o STF passa por mais esse vexame de exaltação, pelo seu presidente, de uma norma infame que visa exatamente a “garantir” que nenhum corrupto, nenhum criminoso jamais seja condenado, sequer na primeira instância.

Ocorre que o presidente do STF sabe – ou deveria saber – que essa sórdida lei é direta, dupla e absolutamente inconstitucional.

Isso porque a Constituição Federal, no seu artigo 109, institui o princípio da unicidade do juízo, ao declarar que ao juiz compete PROCESSAR E JULGAR as causas sob sua jurisdição natural.

Assim, não pode haver a revogação dessa norma constitucional da unicidade do juízo, a não ser através de uma PEC.

E a iniciativa dessa Emenda é PRIVATIVA do Poder Judiciário.

O art. 96, II, da Constituição declara competir privativamente ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de cargos de juízes e a alteração da organização judiciária.

Portanto, o “juiz de garantia” é um escabroso jabuti absolutamente inconstitucional jogado na Lei Anticrime, criando 2 instâncias na própria 1ª instância, para assim termos 5 instâncias.

Resposta:

É flagrante o descompasso dessa crítica com os artigos do CPP concernentes ao Juiz das Garantias. Exordialmente, deve-se esclarecer que o projeto não “criou” novos cargos de juízes, tampouco instituiu uma “nova instância”, antes do próprio oferecimento da denúncia. Como afirmado no início da exposição, a prevenção passou a ser causa de exclusão (não de fixação) da competência jurisdicional.

Assim, aquele juiz que for invocado para atuar na fase precedente ao processo, sendo informado a respeito da existência de qualquer investigação criminal, recebendo eventuais autos de prisão em flagrante e instaurando, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, qualquer medida restritiva de direitos fundamentais, de exclusiva reserva jurisdicional, estará impedido de funcionar no processo, na forma dos seguintes artigos:

Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.

Art. 3º-E. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.

Vê-se, da leitura dessas normas, que não há a formação de uma “nova espécie” do gênero Magistratura. Os juízos presentes na fase de inquirição serão os mesmos órgãos do poder judiciário já existentes e elencados na Constituição Federal e nos Códigos de Organização Judiciária.

No âmbito da Justiça Comum Estadual, a título de exemplo, os mesmos juízes monocráticos de primeira instância “funcionarão” como juízes das garantias, bastando que se adiantem em relação aos demais em qualquer ato pré-processual para que estejam impedidos, na forma do artigo 3º-D, de funcionar no processo, implicando na sua (re)distribuição. Um mesmo juiz poderá, portanto, ser “das garantias” em um processo e, em outro distinto, de instrução e julgamento. Não haveria de se falar em violação na legitimidade constitucional para a propositura, ao Legislativo, de criação de novos cargos.

Não haverá “concurso público” para ingresso na “carreira” de juiz pré-processual, como o infundado raciocínio de Carvalhosa leva a crer, restando preservados o ingresso na carreira para o mesmo cargo; de juiz de direito (substituto), no cenário em questão. O juiz das garantias não institui um novo órgão no Poder Judiciário, configurando-se tão somente como uma nova “condição objetiva de impedimento”.

Essa conclusão é fortalecida quando tem-se em mente que todos os magistrados, inclusive de Tribunais, poderão incidir nessa cláusula, no momento em que a eles competir o julgamento originário. Se, hipoteticamente, um desembargador realizar o controle jurisdicional da investigação de um réu com prerrogativa de foro para julgamento no Tribunal de Justiça, a exemplo de um Parquet, nada impede a sua exclusão do posterior julgamento em plenário. É o que ensina o eminente professor Aury Lopes Jr (Direito processual penal, 17. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 161).

A garantia da imparcialidade é exigível de cada magistrado, é atributo pessoal de cada julgador, que não guarda nenhuma relação com o fato de o julgamento ser colegiado ou singular. Basta um magistrado estar contaminado, para afetar todo julgamento, pois o devido processo não relativiza a garantia da imparcialidade e não negocia com juiz contaminado. Se em primeiro grau existe a discussão acerca das varas de um único juiz, que já refutamos, nos tribunais esse problema seque existe.

Em relação ao artigo 109 da CF, a priori, lê-se que versa a respeito da competência para processar e julgar dos juízes federais, especificamente, enquanto Modesto (equivocadamente) o invocou como se este tratasse da generalidade dos magistrados. Acredito que haja sido apenas um pequeno engano quanto à indicação legal. Mas levemos a cabo a análise dessa norma, à luz do “princípio da unicidade do juízo”, nas palavras do jurista.

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.

Da leitura do texto legal acima, em conjugação com os artigos 3º-A a 3º-F do CPP, não é possível extrair incompatibilidade alguma. De início, a competência de processamento e julgamento dos juízes federais não foi suprimida pela superveniência do juiz das garantias.

Afinal, como dito exaustivamente, eles mesmos poderão funcionar como juízes das garantias, haja vista não se tratar de um novo órgão judiciário, mas de uma cláusula impeditiva de funcionamento na fase processual. A atribuição estabelecida aos órgãos monocráticos de primeira instância da Justiça Comum Federal, no referido artigo 109 da Lei Maior, não foi frustrada pelo projeto, pois este não a “transferiu” para um novo membro do Poder Judiciário, senão aos mesmos juízes federais citados.

Conclui-se, portanto, pela integral improcedência das teses arguidas pelo advogado quanto à inconstitucionalidade do instituto. O juiz das garantias consubstancia uma remodelação na interpretação do artigo 83 do CPP (Prevenção), que considerará a contaminação do juízo com a fase inquisitorial e pré-processual como um fundamento para a sua objetiva (in)competência.

Ainda que seus mais notáveis detratores possam contestar a procedência da fundamentação dogmática do projeto, pautado em boa parte pela Teoria da Dissonância Cognitiva, é mister que eles o façam nesses termos, sem a necessidade de conjurar ilusórias inconstitucionalidades.


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