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Os fantasmas do processo penal

Por Felipe Faoro Bertoni

Estimados leitores, a coluna de hoje versa sobre um tema que continuarei a abordar em oportunidades futuras. Falarei sobre a crise suportada pelo processo penal brasileiro.

O jus puniendi estatal somente pode ser efetivado por meio de um processo, caminho pelo qual deve percorrer a acusação até alcançar, ao final, eventual juízo de certeza sobre o fato imputado, ocasião em que será imposta a condenação. Esse caminho nem sempre é tranquilo e, muitas vezes, apresenta obstáculos.

De fato, hoje, o sujeito de um processo criminal conta com diversas garantias e Direitos que lhe favorecem. E, por mais que significativo segmento doutrinário e jurisprudencial pareça ter dificuldade em compreender, esses Direitos e garantias não são frutos de casuísmo e nem tampouco foram alçados a essas categorias por mera formalidade. São conquistas históricas dos cidadãos. Todos os cidadãos. Aqueles que estão sendo processados e aqueles que não.

É triste ter que dizer o óbvio. Aliás, é sintomático precisar explicar que, ao se defender o respeito às garantias, se busca, em verdade, defender a higidez de um sistema democrático e não a impunidade, como uma leitura míope e tosca pode assim concluir.

A partir do momento em que o Estado monopolizou o poder de punir, estabeleceu algumas regras para tanto, as quais devem, invariavelmente, serem observadas, sob pena de a Lei se fazer letra morta e o Direito de Defesa um formal simulacro. Efetivamente, hoje parece que o processo penal é uma mera formalidade. Trata-se de procedimento absolutamente despiciendo, que somente entrava e dificulta o alcance de um fim já previsto desde o exercício da ação penal. Nesse norte maniqueísta, em que se compreende o processo como uma guerra entre bem e mal na qual o réu é alçado à categoria de inimigo e o juiz toma para si não mais a função de julgar – de forma imparcial, por óbvio –, mas de fazer justiça, custe o que custar, o preço que se paga é alto. Isso custa. E muito. Deturpa-se a lógica do sistema.

Nossa política criminal possui um cunho nitidamente bélico – guerra contra o tráfico, guerra contra as drogas, combate à corrupção. Certamente os operadores do Direito – seres sensíveis – são influenciados por essa perspectiva, mesmo que inconscientemente, acabando por trazer para o interior do processo fatores exógenos. Para exemplificar, basta ver a quantidade de prisões preventivas decretadas com base na gravidade abstrata do delito de tráfico. Duas ou três linhas genéricas reprisando o velho chavão de que o “tráfico é delito grave que causa grande dano à sociedade e no qual orbitam diversos outros delitos, inclusive patrimoniais” são suficientes para manter a prisão de quem quer que seja, seja qual for o caso concreto. Mais uma vez, o juiz combatente utiliza um subterfúgio argumentativo inconsistente para cumprir seu papel e proteger a sociedade, mesmo que para isso precise solapar o ordenamento jurídico e sua matriz principiológica.

No âmbito da condução do processo a perspectiva é a mesma. Não se respeitam formas e nem procedimentos. Ilustrativamente, basta ver que ocorrem, a torto e a direito, violações ao artigo 212 do Código de Processo Penal e à Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal. Qual a dificuldade? Não seria melhor respeitar o enunciado legal e a orientação sumular do que, posteriormente, ter que justificar o injustificável? Muitas vezes, aliás, reconhece-se a atipia formal ocasionada única e exclusivamente pelo juízo, mas se deixa de reconhecer a irregularidade diante da inação do defensor (”a defesa não arguiu no momento oportuno; a defesa não demonstrou prejuízo” e por ai nós vamos…, dane-se o réu).

Essa orientação estabeleceu um panorama no qual as nulidades são institutos praticamente míticos, somente existentes na literatura. Primeiro, categorizam-se os vícios formais (nulidade relativa e nulidade absoluta) e, a partir daí, busca-se estabelecer uma série de entraves burocráticos ao reconhecimento da(s) ilegalidade(s). Verifica-se se a nulidade foi aventada no “momento oportuno”, argumento mágico para tornar válido qualquer ato processual defeituoso. Não se está a dizer que inexiste o instituto da preclusão. Evidente que há. O que se está a criticar é a forma reducionista como se ignora a complexidade processual dos casos concretos que, sem dúvidas, exigiriam respostas igualmente complexas, mas que são respondidas da forma mais simplória.

Enfim, a quantidade de crimes, a dificuldade de investigação, o avançado acúmulo de trabalho não podem servir como justificativa para deturpar clássicas categorias dogmáticas. Todo e qualquer operador do Direito deve zelar pelo fiel cumprimento da Lei e pelo respeito dos Direitos e garantias, independentemente do lado em que esteja. O processo penal não é um jogo e, muito menos, uma guerra, como pensam alguns.

Por derradeiro, é absolutamente desarrazoado que se possibilite a interferência de elementos extraprocessuais no âmbito do devido processo legal. Como lembram vozes solitárias do Direito Processual Penal, não se trata de não punir, mas de punir garantindo, como o Estado se propôs a fazer com o Direito Penal e Processual Penal.

_Colunistas-FelipeFaoro

Felipe Faoro Bertoni

Advogado (RS) e Professor

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