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Os Juizados Especiais Criminais digitais e a prova pericial

Os Juizados Especiais Criminais digitais e a prova pericial

Fora aprovado nesta quarta-feira, 29 de maio, pelo plenário do Senado o PLC 110/18, que dispõe acerca da criação dos denominados Juizados Especiais Criminais Digitais. O texto aprovado pelo Senado Federal e que também já fora objeto de aprovação pelo Plenário da Câmara dos Deputados segue agora para a sanção – ou veto – presidencial.

Nos chama a atenção, no referido projeto de lei, não só a ideia reitora que o motiva – conforme se pode verificar na “justificação” apresentada juntamente com o PLC quando de sua propositura –, mas o falta de noção técnica que conduz os trabalhos do mais alto órgão legislativo do País: o Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal).

Dizemos isso, pois, do ponto de vista iminentemente técnico-jurídico – vez que o que nos move em nossas reflexões é sempre o espírito acadêmico e prático profissional e nunca político – ao que nos parece, a boa técnica legislativa e os princípios basilares de direito penal e mesmo constitucional foram totalmente abstraídos quando da elaboração da já referida “justificação” ao projeto de lei 110/18 de autoria de senador federal. Vejamos:

Inicialmente cabe destacar que, a nosso ver, o equívoco mais gritante da “justificação” do PLC seria a ideia de que computadores e dispositivos informáticos poderiam ser agentes e vítimas de crimes. Aqui não há necessidade de muita argumentação técnico-jurídica para que o erro flagrante seja verificado: como bem sabe qualquer estudante de primeiro ano de Direito Penal, somente os seres humanos podem ser agentes de crime, bem como não se pode cogitar a ideia de que um computador ou dispositivo informático seja vítima de crime, vez que, no máximo, tal bem móvel poderá ser objeto material do crime, sendo que a vítima será, inevitavelmente, ou um ser humano ou a coletividade de pessoas, mas nunca o próprio objeto.

Vejamos o que diz o texto da “justificação”, in verbis:

É sabido que a ocorrência de crimes cibernéticos tem crescido à medida que computadores e outros meios tecnológicos invadem o quotidiano, tornando-se a ferramenta principal de operação dos diversos atores sociais. Nesse contexto, o computador ou dispositivo pode ser o agente, o facilitador ou a vítima do crime.

Sobre isso, nada mais a declarar!

Outro aspecto que nos alerta – agora um tanto quanto mais técnico e de impacto no cotidiano da apuração dos delitos ditos informáticos – é a ideia trazida no próprio texto legal que altera os artigos 60 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 e 18 da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, incluindo em ambos o parágrafo 2º, que assim cria os referidos juizados criminais digitais:

Art. 60 ……………………………………………………………………

§ 1º (atual parágrafo único) ………………………………………..

§ 2º Serão criados Juizados Especiais Criminais Digitais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo cometidas mediante o emprego da informática, ou a ela relacionadas. (NR)

Art. 2º ……………………………………………………………………

§ 1º (atual parágrafo único) ……………………………………….

§ 2º Serão criados Juizados Especiais Criminais Digitais, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo cometidas mediante o emprego da informática, ou a ela relacionadas. (NR)

Relembrando algumas ideias reitoras do Direito Penal e do Processo Penal nos vem à mente a determinação legal e principiológica, contido no Código de Processo Penal, de que nos crimes que deixam vestígio a realização de perícia técnica é imprescindível ao processamento do feito, sob pena de nulidade, por ocasionar prejuízo à defesa do réu.

Como sabemos, a prova é o elemento capaz de formar o convencimento do julgador em um processo judicial. É fundamental que o Estado investigador, quer em fase inquisitorial, quer em fase de instrução criminal, explique a verdade dos acontecimentos dos fatos. A exigência do exame pericial no crime não transeunte é, portanto, inerente ao direito de defesa do acusado.

Assim, deve-se, inexoravelmente observar o disposto no artigo 158, do Código de Processo Penal que assim, dispõe, quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Tal artigo deverá ser analisado em conjunto com o preceituado pelo artigo 564 do mesmo diploma legal. Vejamos:

Art. 564.  A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

(…)

III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

(…)

b) o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art. 167; (grifamos)

Em outras palavras, apesar de o artigo 182 do Código de Processo Penal explicitar que o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte, deve-se verificar que tal artigo não dispensa a realização do exame pericial, mas apenas reforça sua obrigatoriedade, afirmando que o Juiz poderá aceitá-lo ou rejeitá-lo, o que demonstra que ele precisa existir para ser aceito ou rejeitado.

Com isso em mente, relembremos o objetivo maior do Juizado Especial Criminal: orientar-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Nesse passo, tendo o Juizado Especial Criminal, conforme disposto pelo artigo 60 Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, a competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo e daquelas causas menos complexas, é de se compreender a ideia trazida pelo artigo 77, parágrafo 2º da mesma lei especializada. Com isso, podemos afirmar que, em regra, a lei processual penal assegura a obrigatoriedade da realização do exame pericial em crimes que deixam vestígios, porém, pode tal exame ser dispensado nos casos de crimes de baixo potencial ofensivo (de competência do juizado especial criminal) já que a apuração de crimes que possuem um rito célere e sumaríssimo seria prejudicada pela complexidade que pode se dar em um exame pericial, violando o próprio direito à defesa do réu e o texto legal da Lei nº 9.099/1995.

Assim, como relembrado, a prova pericial complexa, não é admissível na esfera dos Juizados Especiais, uma vez que não se coaduna com seus princípios norteadores, corroborando esse entendimento Humberto THEODORO JÚNIOR que assim destaca:

A prova técnica é admissível no Juizado Especial, quando o exame do fato controvertido a exigir. Não assumirá, porém, a forma de uma perícia, nos moldes habituais do Código de Processo Civil. O perito escolhido pelo Juiz será convocado para a audiência, onde prestará as informações solicitadas pelo instrutor da causa (art. 35, caput). Se não for possível solucionar a lide à base de simples esclarecimentos do técnico em audiência, a causa deverá ser considerada complexa. O feito será encerrado no âmbito do Juizado Especial, sem julgamento do mérito, e as partes serão remetidas à justiça comum. Isto porque os Juizados Especiais, por mandamento constitucional, são destinados apenas a compor ‘causas cíveis de menor complexidade’ (CF, art. 98, inc. I ). Grifamos

Doutra feita, como se sabe, resta praticamente impossível a prova de ocorrência de um crime informático sem a realização de perícia técnica, pelo que, todos os crimes de competência do novo Juizado Especial Criminal Digital demandariam realização de perícia para sua comprovação, pelo que, se estaria diante de um impasse: ou, frente à necessidade de realização de perícia o Juiz do Juizado Especial reconhece sua incompetência – assumindo que a causa que necessita de perícia não é de baixa complexidade e, portanto, não de adequa ao rito e aos princípios dos Juizados – remetendo-se os autos à Justiça Criminal Comum, o que geraria um esvaziamento da competência do novo juizado criminal digital, pois todas as suas causas seriam remetidas para a Justiça Comum, pois complexas, ou se determinaria a realização da perícia, no âmbito do próprio Juizado Especial, violando, assim, os princípios balizadores dos Juizados Especiais, em especial os princípios da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, podendo ser alegada a nulidade do procedimento em se verificando a violação legal e a ocorrência de prejuízo à defesa do acusado.

Eis o dilema! Que fiquemos com tal reflexão posta, pois o legislador nacional, a nosso ver, não obstante mencione em sua “justificação” que, “Fundada no sucesso dessa experiência [Juizados Especiais Criminais], a presente iniciativa tem como objetivo criar os Juizados Especiais Criminais dedicados ao processo e julgamento dos crimes de informática”, não nos parece que, de fato, o legislativo federal conheça a realidade e a experiência vivenciada no âmbito dos Juizados Especiais Criminais ou, pior, não tenha noção alguma de que, além de computadores não poderem juridicamente praticar crimes ou serem vitimas deles, todos os crimes que envolvem novas tecnologias, por sua própria natureza, são complexos e demandam para sua perfeita elucidação prova pericial técnica, não podendo jamais ser classificados como crimes de menor potencial ofensivo ou crimes de baixa complexidade.


REFERÊNCIAS

SANTOS, Pedro Luiz Mello Lobato dos. Nulidade absoluta pela não realização de prova pericial em delitos que deixam vestígios. Disponível aqui. Acesso em 30/05/2019.

SANTOS, Diemes Vieira. Observações importantes sobre a perícia criminal no processo penal. Disponível aqui. Acesso em 30/05/2019.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 31ª ed., v. III, p. 436.


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Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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