Os Miseráveis e a ascensão dos “crimes” famélicos
Tratar a ascensão de crimes famélicos em Os Miseráveis é angustiante quando se entende que, nos dias atuais, de uma crescente tecnologia e aparatos imensuráveis de enorme complexidade trazidas à nossa realidade pelo intelecto humano, motivador de todas as evoluções, ainda, morrem milhares de pessoas de fome mundo afora; ainda, existem aqueles que se camuflam junto aos ratos para deles pilhar a conquista de farelos e migalhas deixadas como prêmio de sobrevivência.
Sr. Mabeuf, personagem modelar da obra Os Miseráveis, de Victor Hugo, era uma pessoa que em sua mocidade encantara-se por botânica e seu jardim era conhecido como a joia da simples rua onde morava. Comprou assim um viveiro com a finalidade de unir seu amor pelas flores à sobrevivência e dessa forma, viveu por certo tempo seu sonho. Como as dificuldades foram se avolumando em toda a nação, em especial em sua cidade, pôs à venda seu tesouro e passou a sobreviver então como todos os seus conhecidos: de pequenos favores, de escambo e de vendas de seus aparatos pessoais.
Num desses momentos em que a fome aperta, deixar para trás suas relíquias como seus livros, paixão desenfreada do velho Mabeuf, era apaziguar a dor do estomago mas descobrir o lento massacre da alma. Poucas batatas algumas noites ou dois ovos, que com o tempo passou a ser um apenas, era o único alimento do dia do nosso citadino. Para outros tantos, numa época devastada pela reforma que vinha ao encontro da reestruturação da nobreza e da elite francesa em detrimento do povo que se encontrava em uma temerosa luta dos mais fortes, ter uma macieira era um conforto; ao menos, as maças servem ao propósito de alimentar o ser defasado.
E o que falar do pobre Jean Valjean, em Os Miseráveis, que ao furtar um pedaço de pão, quebrando a janela de uma padaria com intuito de saciar a fome de seu sobrinho moribundo, recebeu da lei cinco anos nas galés, que viriam a se tornar dezenove invernos, pena aumentada pelas inúmeras tentativas frustradas de fuga, empreendidas no desespero de alguém que entende o ato praticado e reconhecido pela lei como crime, mas que desconhece os motivos que autorizam rechaçar seu corpo e sua existência quando o único ato “criminoso” ocorreu para que se mantenha o pouco de vida pela qual se agarra o homem, com todas suas surrupiadas forças.
No martírio da prisão, o crime cometido passa a ser entendido como uma ferramenta para a vida e sua manutenção, não mais como um ato em desproporção ao direito ou a lei. De toda forma, engendrar a subversão nesses antros de sofrimento e preparar a formação de uma inversa medida das coisas e situações, pode levar o indivíduo a entender que todos, sem exceção, são culpados de sua tragédia, nas técnicas de neutralização estudadas por Matza e Sykes.
Nesse ínterim, a dignidade, retratada em artigo anterior (A injustiça institucionalizada: selecionando os bons e os maus), passa a ser entendida pelo sujeito em depreciação como um relevante fator que expande a sua diferença perante aos outros, entendendo-se com humano de fato jogado aos animais, que são os outros. Nessa batalha, o mais forte deverá vencer, e um sofrido animal uma vez enjaulado e ressentido dos açoites e das surras não se ocupa em travar batalhas das quais não possa sair exitoso.
Em Os Miseráveis, Victor Hugo com maestria traz a fúnebre aventura (na realidade, apenas os nomes de alguns mudam, todavia, os fatos ocorreram, segundo o autor, de uma forma ou outra, são reais) do espírito do homem por sobrevivência em tempos de esquecimento do cidadão comum, que pairava como uma simples nuvem de chuva a ser evitada. Assim, o crime, ou furto famélico tornou-se o carro chefe das condenações na França de 1830, pós Waterloo e Napoleão, sob a égide de Luís Filipe. Além desses crimes, a vadiagem era outro ato temerário, uma vez encontrado em ócio, as galés seriam a parada final.
Furtar para comer nos parece tão distante, uma desventura de outros tempos citada apenas em livros de romancistas realistas ou em contos de história, todavia, não é bem por aí.
Inúmeros são os que ainda passam fome e não possuem um prato à mesa. Muitas pessoas nos dias da tecnologia travam suas batalhas em prol de sua sobrevivência, enjeitando uma luta indigna por um simples prato de comida, necessidade básica e premente do ser humano.
Os dias passaram, mas casos como o estudado pelo autor ainda são notícia no judiciário e nas vidas dos tribunais, derradeiramente. O colunista que vos escreve já foi testemunha, em dias de labuta em delegacias lotadas, da chegada de um infrator e seu crime chamou atenção de jornalistas que cobriam um outro caso. O rapaz, morador de rua, em sua ânsia de saciar a fome, furtara uma coxinha de uma lanchonete. Ao ser detido pelos donos e funcionários do estabelecimento, a prova do crime estava sendo satisfatoriamente deglutida pelo personagem da vida real.
Levado à delegacia, ainda ficou aquela noite inteira aos “cuidados” da polícia civil, que serviu ao condenado o jantar dos detentos, digno de um banquete de Luís XVIII. O delegado, vendo o sujeito, levou-o, pela manhã até a padaria próxima e com ele tomou seu café da manhã, com inimagináveis croissants, que o moribundo nem sabia que existiam. Por certo, nem aqui nem em França de Hugo se trata de crime ou furto famélico, mas sim, de subsistência.
Nas ruas, o lixo é o alimento do agonizante, que tem fome, desejos e vontades, pois ecce homo como todos nós, tanto na época do escritor francês quanto na de hoje. De fato, não há diferenças simbólicas entre os períodos representados, uma vez que fome sempre é e será uma violência indigna e das mais opressoras que existem.
O furto famélico está longe de ser superado, mas muito distante da exterminação, em pleno século das maravilhas tecnológicas e do enorme aparato de coincidências entre o que é ser miserável nos dias hodiernos e o que já foi noutros tempos de Victor Hugo.
REFERÊNCIAS
HUGO, Victor. Os Miseráveis, 1862. Tradução Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Martin Claret, 2015