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Os Miseráveis e o princípio da insignificância

Os Miseráveis e o princípio da insignificância

Na obra clássica de Victor Hugo, intitulada “Os Miseráveis”, percebemos um trecho que refaz aquele velho dilema que o Judiciário e os Tribunais superiores passam ao julgar casos que envolvem o princípio da insignificância frente ao princípio da Legalidade, no qual quando se deve desconsiderar um ato transgressor diante do bem juridicamente protegido pelo ius puniendi do Estado.

Jean Valjean, no começo da obra, vivia em extrema pobreza, tendo inclusive que furtar pão para sobreviver e, em alguns casos, vivia constantemente sendo perseguido pelo inspetor de polícia chamado Javert. Ambos possuíam ampla rivalidade, pois um furtava para sobreviver e se livrar da fome, já o policial tinha que cumprir a lei e limpar as ruas de Paris de criminosos.

Nesse viés, o agente prendeu Jean Valjean, cumprindo a lei, que para ele era sua missão, de modo que o castigava nas masmorras e cárcere, porém Jean Valjean não fazia isso porque queria, mas porque sua condição o incitava a tanto e esse drama humano terrível do livro trespassa pra nossa realidade, onde um rapaz foi torturado em shopping Center por seguranças por ter furtado comida.

Casos como esses ocorrem com constância e nos coloca nessa zona de discussão: quando uma transgressão pode ser desconsiderado pela lei e deve ser deixado passar sem punição? 

Já sabendo dessa realidade natural humana, os Tribunais Superiores, tanto a nível de Superior como Supremo, possuem inúmeras jurisprudências tratando da temática com maestria.

No caso recentemente tratado ficou evidente a desproporcionalidade dos agentes no trato do evento, haja vista que os seguranças não tinham conhecimento dessa questão e de como atuar nesse caso em específico.

Segundo a jurisprudência, somente se aplica o princípio da insignificância se estiverem presentes os seguintes requisitos cumulativos: a mínima ofensividade da conduta; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Em todas elas, se nota que o jovem infrator incorreu, pois, em casos extremos de miserabilidade. O ser humano não age pela sanidade e racionalidade, mas por instinto de tentar mitigar aquela necessidade vital imediata, que é a fome.

Na História, o agente policial Javert se preocupa estritamente com o seu dever de fazer cumprir a lei. No entanto, como bem sabemos, a lei deve estar vívida e não puramente estática e fria, passando pelo crivo do caso concreto e o que fez o infrator, devendo o nobre julgador saber dividir as fases do iter criminis e amoldar o caso concreto à lei por subsunção.

O Dilema de Javert frente ao Jean Valjean se passa simplesmente em aplicar o princípio que hoje usado pelo judiciário mediante o caso concreto. Para o Policial do drama, era uma desobediência imperdoável para a lei que não poderia acontecer.

Diante de tudo isso conseguimos perscrutar que a desproporção não é justificável quando se pode aplicar, e nem mesmo a reincidência inibe a autoridade e o julgador de aplicar singular princípio da bagatela, senão vejamos o julgado do Superior Tribunal de Justiça a seguir:

A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto. Apesar disso, na prática, observa-se que, na maioria dos casos, o STF e o STJ negam aplicação do princípio da insignificância caso o réu seja reincidente ou já responda a outros inquéritos ou ações penais. De igual modo, nega o benefício em situações de furto qualificado. STF. Plenário. HC 123108/MG, HC 123533/SP e HC 123734/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 3/8/2015 (Info 793).

Segundo o exposto acima, a reincidência, ela não impede a aplicação do princípio da insignificância, devendo o juiz aplicá-la quando as condições do caso concreto justificar a medida.

Mesmo sendo um miserável que não tinha o que comer, agiu muito bem o Inspetor Javert ao deixar o prisioneiro Jean Valjean partir pra salvar a vida de Marius, ferido em combate, para a casa do avô, no intuito de prestar socorro.

E também depois quando Valjean pediu para passar em casa, pois, mesmo sabendo do que ele havia feito, sabia que Jean tinha um bom coração e tudo o que ele havia feito, que mesmo sendo um modo reprovável para a sociedade, fez por necessidade, concedendo ao final permissão para ir.

Mediante esse fragmento da história vemos:

Javert está encostado no cais, dividido entre sua crença na autoridade e a bondade de Jean Valjean. Ele não consegue prender Valjean, e fazendo isso ele viola as leis. Sentindo que tudo em que acreditava desmoronou, a vida para Javert perde a razão de ser. 

Nesse relato, mesmo sendo envolvente pela atitude do agente da lei, vemos também que, ao relativizar a norma, ele se sentiu ferido a tal ponto de não conseguir sobreviver à decepção de viver em um sistema injusto da regra penal, que na época ainda não possuía o senso de insignificância do bem jurídico em determinados casos pela pequenez do objeto furtado (bagatela).

Certamente o senso de existência desse princípio na época teria aliviado sua consciência, que se deixou levar pelo peso da existência arrependido de tudo que havia feito sobre a sombra da letra fria da lei.

A Proporcionalidade, a Eficácia e a Justiça como um bem social, que não livra somente ricos e poderosos, beneficiando seus feitos maldosos, se voltaram também para livrar pessoas em situação de desamparo e miserabilidade, quando, ao formular o princípio da insignificância, trouxe mais dignidade para a pessoa humana em situação de vulnerabilidade preservando preceito constitucional basilar.

O Dilema de Jean Valjean e Javert é uma alegoria que se projeta da ficção para realidade, de modo a transmitir uma reflexão do cidadão que, ao se submeter ao império das leis, fica a mercê do Estado, que diversas vezes é autoritário e opressivo, sendo que a lei, ela pode ser injusta, mas um princípio vem para salvaguardar, relativizar e dar dinamicidade em amparo à lei pra evitar uma injustiça.

É importante não ser legalista demais e sim jurisprudente ao analisar e julgar um caso concreto para se evitar excessos e não cair na barbárie como foi feito ao caso do shopping Center, no qual aquele jovem foi espancado de modo tão brutal.

Nada justifica nenhuma medida como esse caso em específico, devendo haver uma lente de razoabilidade e proporcionalidade, mais uma vez sendo necessário partir pra ótica da condição social do agente infrator pra determinar qual melhor caminho a seguir.

O princípio da insignificância pode ser reconhecido até mesmo após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como ficou bem fundamentado no julgado do atual presidente do Supremo Tribunal Federal(STF), Dias Toffoli, que afirma:

O princípio da insignificância pode ser reconhecido mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória. HC 95570, Relator Ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 01/06/2010.

Mesmo após a sentença o juiz, ao perceber que o caso se amolda ao princípio da bagatela, pode ele reconhecer após o trânsito em julgado. Isso demonstra o tanto que esse princípio tem força no ordenamento jurídico, no intuito de evitar uma incoerência desproporcional na Justiça.

Desta feita, vemos o quanto é importante refletir sobre essa temática principiológica e como ela se amolda na realidade prática e, da mesma forma, como um caso relatado no estudo da literatura pode abrir nossos olhos para questões fundamentais na hora de aplicar a justiça de forma equânime e justa para todos mediante as suas mazelas e fragilidade humana.


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Paulo André Neves Brandão

Formado em Bacharelado em Direito pela Estácio CEUT, Advogado, Professor e membro da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça da Ordem dos Advogados do Piauí Seccional Piauí.

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